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9 de julho de 2011

"Depois de mim virá..." 

Por Vital Moreira

No passado, vários governos violaram os seus compromissos eleitorais de não subir impostos. Nenhum, porém, o fez tão celeremente como Passos Coelho, que logo na discussão do programa do Governo, ainda antes de começar a governar, anunciou um imposto especial que não estava previsto no programa de reajustamento da troika e cuja eventualidade negara antes das eleições. Com a agravante de que desta vez, depois do intenso escrutínio da situação económica e financeira nacional pela UE e pelo FMI, não podia haver nenhum motivo para surpresas nessa área.

Tendo sido a mais rápida quebra de um compromisso de não subir impostos, também foi aquela em que a justificação invocada foi a mais "esfarrapada". De facto, o pretexto invocado - a publicação do saldo orçamental do primeiro trimestre - é duplamente falso. Primeiro, como o semanário Expresso informou, a decisão sobre o novo imposto já tinha sido tomada antes dessa notícia. Segundo, como o próprio INE bem explicou, o referido saldo orçamental não compara receitas e gastos efetivos mas sim receitas efetivas (aliás, nem todas) com compromissos de gastos, incluindo os que só vão ser efetuados posteriormente. Por isso o défice apresentado é artificialmente empolado em relação à situação real.

Sendo descarado o argumento, o Governo teria feito bem melhor se tivesse referido a verdadeira razão, a saber, a vontade de "ir além do programa da troika" em matéria de austeridade orçamental, de modo a apresentar no fim do ano o brilharete de um défice orçamental inferior ao previsto, ou para utilizar a receita adicional do imposto para financiar a prometida benesse ao patronato, de redução da sua contribuição para a segurança social (TSU), cujo modo de financiamento nunca foi esclarecida. Qualquer que seja a explicação verdadeira, a falsidade do pretexto invocado constitui uma forma pouco escrupulosa de fazer política.

Também nunca um novo imposto foi anunciado de forma tão incompleta nem tão confusa, revelando amadorismo político e falta de respeito pelo Parlamento e pela opinião pública. Apresentado como uma espécie de IRS suplementar, não se deram a conhecer porém alguns dos traços essenciais de qualquer imposto, como os rendimentos que lhe ficam sujeitos ou as taxas do imposto. Só se sabe a receita que o imposto há de gerar (equivalente a metade da receita do 14.º mês) e a dedução de base (equivalente ao salário mínimo nacional), o que é francamente pouco. Desconhece-se também como é que vai ser respeitada a regra constitucional da irretroatividade fiscal (que não admite exceções), que obriga a que o novo imposto só possa incidir sobre rendimentos futuros, e não sobre os já recebidos. Acima de tudo, não se sabe a que propósito se invocou o subsídio de Natal, que gerou na imprensa, mesmo a da área económica, as mais absurdas especulações, calculadas exclusivamente sobre o valor do 14.º mês de cada pessoa. Não havia necessidade de tanto atabalhoamento nem de tanta inépcia. Se isto é a forma de trabalhar deste Governo, bem podemos ficar preocupados.

Não se conhecendo os principais contornos do novo imposto, há todavia sérias razões para duvidar da sua equidade. Em primeiro lugar, trata-se de um imposto sobre o rendimento e não sobre o consumo ou sobre o património (na Grécia, lançou-se um imposto extraordinário sobre sinais manifestos de riqueza, como piscinas, iates e aeronaves, obviamente bastante mais justo e fácil de aplicar, mas trata-se de um Governo socialista...). Em segundo lugar, o primeiro-ministro nada disse sobre a progressividade das taxas do imposto, o que é extraordinariamente grave, desde logo por violação da regra constitucional da progressividade da tributação do rendimento, para mais num imposto especial de (alegada) emergência nacional, onde a justiça fiscal se justifica mais ainda. Em terceiro lugar, se o novo imposto se aplica aos rendimentos englobados em IRS, parece seguro que ele vai isentar os rendimentos de capital - como dividendos, juros de depósitos e de obrigações -, o que é uma iniquidade, não somente porque tais rendimentos já gozam do privilégio de uma baixa "taxa liberatória" proporcional (não contando eles sequer para o cálculo da taxa sobre os demais rendimentos), mas também por se tratar de um imposto extraordinário, onde a solidariedade coletiva exigia que eles também dessem a sua contribuição.

Batendo este imposto especial recordes de celeridade na quebra de compromissos eleitorais, de inconsistência da sua justificação, de confusão na sua apresentação e, tudo o indica, de iniquidade fiscal, não pode deixar de causar enorme espanto o conformismo, se não aplauso, com que o anúncio foi recebido pela generalidade da imprensa e pelos grupos de interesse, que não teriam perdoado tal veleidade ao anterior Governo, que teria sido obviamente crucificado se tivesse avançado com algo de semelhante, como muitos propuseram. Há governos fadados assim, "os nossos", a quem tudo se aceita.

Pelo mesmo padrão, também se não estranha a ausência de qualquer comentário do Presidente da República, que, no discurso da sua tomada de posse, com o qual declarou guerra ao Governo socialista e desencadeou o processo do seu derrube, proclamou retoricamente que "há limites aos sacrifícios que se podem pedir aos cidadãos". Pelos vistos, os sacrifícios que não eram tolerados ao anterior Governo podem agora ser superados, com magnânimo aplauso, pelo novo Governo. Há governos assim, os diletos, a quem tudo se consente.

Razão tinha José Sócrates quando advertiu em devido tempo que, em matéria de austeridade, "ainda iríamos ter saudades do PEC IV" (onde nenhum imposto desses aparecia). Também nesta área se pode dizer que "depois de mim virá..."

[Público, terça-feira, 5 de Julho de 2011]

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