<$BlogRSDUrl$>

1 de maio de 2011

A vertigem do poder 

Por Vital Moreira

A queda anunciada do Governo de José Sócrates, em consequência da rejeição das novas medidas de disciplina orçamental (o chamado PEC IV) por todas as oposições, confirma, por um lado, que um Governo sem maioria parlamentar dificilmente pode enfrentar com sucesso uma prolongada crise económica e financeira como a que vivemos e desmente, por outro lado, a tradição de que as oposições de direita (CDS e PSD) e de esquerda (PCP e BE) não se juntam para derrubar um Governo socialista.

Com a chegada ao fim do Governo Sócrates II, sem cumprir sequer metade da legislatura, voltar-se-á à regra de que entre nós nenhum Governo minoritário consegue terminar o seu mandato de quatro anos. Continuará a ser exceção o Governo Guterres I (1995-99), mercê da favorável conjuntura económica e financeira de então. Desta vez, a crise volta a impor a sua lei. Quando se trata de impor sacrifícios, mesmo quando imperiosos, nenhuma oposição colabora...

Sendo esse o risco natural dos governos minoritários, porque é que não se tentou em 2009 uma solução de Governo maioritário, mediante um acordo entre PS e PSD? A resposta é simples: não havia nenhumas condições para isso. Ao contrário do que sucedeu em 1983-85, com o "Governo do bloco central", em que a dimensão da crise era conhecida de antemão e houve um compromisso prévio entre os dois partidos (Mário Soares e Mota Pinto) para um Governo de coligação liderado por quem ganhasse as eleições, nada disso ocorreu nem poderia ter ocorrido em 2009. Primeiro, não era conhecida a gravidade que o défice orçamental e a dívida pública viriam a assumir em 2009 e 2010, obrigando a duras medidas de austeridade. Segundo, o fosso político entre os dois partidos tinha-se acentuado, por efeito da contínua deriva liberal do PSD. Terceiro, as más relações pessoais entre os líderes de ambos os partidos não favoreciam nenhum acordo. Quarto, depois da vitória do PS sem maioria absoluta, o PSD, onde Manuela Ferreira Leite se manteve na liderança apesar da inesperada derrota, não estava em condições para aceitar o repto do PS (feito sem grande convicção, diga-se) para um entendimento político entre os dois partidos.

A posterior emergência da gravidade da situação orçamental e da crise da dívida pública não alterou as coisas, apesar de a consolidação orçamental carecer de apoio parlamentar continuado, que só o PSD poderia assegurar. Todavia, tornou-se evidente que depois da mudança na liderança do PSD e da ascensão de Passos Coelho, este passou a apostar tudo no insucesso governamental e na intervenção do FMI como catalisadora das mudanças pró-liberais que ele propugnava. O seu ultimato do verão do ano passado, recusando qualquer aumento da carga fiscal - o que significava um verdadeiro veto orçamental - e depois as exigências colocadas para deixar passar o orçamento para 2011 - tornando a sua execução excessivamente difícil e deixando-o sem suficiente margem de segurança para convencer os mercados da dívida pública quanto à meta da redução do défice -, tudo isso mostrou claramente que o novo líder do PSD estava sobretudo interessado em manter a pressão sobre o Governo de modo a poder escolher o melhor momento para lhe "tirar o tapete".

Esse momento chegou agora com a apresentação das medidas orçamentais para 2012 e 2013, precipitadamente anunciados na semana passada. O PSD parece acreditar que o PS já se encontra suficientemente desgastado pelo seu esforço solitário de tentar superar a crise sem ter de recorrer à ajuda externa e julga que já pode responsabilizar Sócrates pelo pesado preço do eventual recurso a essa mesma ajuda externa, que é mais do que provável em consequência justamente da recusa das novas medidas de austeridade orçamental, que foram consideradas bem-vindas pelas instituições europeias, porque suscetíveis de dispensar a referida ajuda externa.

É evidente que o PSD sabe que, se ganhar as eleições, vai ter de aplicar as medidas que agora rejeita ou outras de efeito equivalente, mais as que surgirem associadas a uma ajuda patrocinada pelo FMI, que a rejeição do PEC IV e a crise política vão tornar provavelmente inevitável. Todavia, a decisão de avançar para a crise política é totalmente racional do ponto de vista do PSD (mesmo que o Governo não lhe tivesse facilitado a vida com a desastrada comunicação do novo "pacote"). Por um lado, não poderia permitir ao Governo o trunfo de superar a crise sem recurso à ajuda externa, como poderia bem suceder, dados os primeiros sinais positivos da execução orçamental deste ano e dado o acordo em Bruxelas para reforçar e flexibilizar o "mecanismo de estabilidade do euro" existente, bem como para criar um novo instrumento de ajuda com caráter definitivo, o que alivia a pressão dos mercados sobre os países mais vulneráveis. Sem a entrada do FMI, Passos Coelho perderia a grande alavanca de que precisa para mudar de alto a baixo o "Estado social" em Portugal, como é seu propósito explícito.

Para o país, este pode ser o pior momento para entrar em crise política e para manter um "Governo em gestão corrente" durante três ou quatro meses. Seguramente que nada disso ajuda, antes pelo contrário, a reduzir a pressão dos mercados financeiros sobre a dívida pública nacional nem para aliviar as medidas de austeridade necessárias para consolidar as finanças públicas. Os portugueses podem vir a ter de pagar bem cara esta crise política, com medidas bem mais gravosas do que aquelas que agora as oposições rejeitam. Mas há momentos em que a racionalidade dos interesses partidários pode prevalecer sobre a lógica do interesse geral.

A vertigem do poder pode ser incontinente.

[Público, terçe-feira, 22 de Março de 2011]

This page is powered by Blogger. Isn't yours?