<$BlogRSDUrl$>

1 de maio de 2011

O império das corporações 

Por Vital Moreira

Numa entrevista na semana passada, o presidente do PSD declarou rotundamente que não se pode nem deve governar "contra as corporações". Pelos vistos, o atual PSD não quer somente "emagrecer" o Estado, mas também expropriá-lo de meios de ação. Estranhamente, esta insólita declaração não suscitou nenhum interesse por parte dos editorialistas e comentadores. E todavia, noutro país, uma afirmação destas desqualificaria irremediavelmente qualquer candidato a primeiro-ministro.

Sem ter aprendido as lições da derrota eleitoral da sua antecessora à frente do PSD - que tentou, sem sucesso, mobilizar em seu favor o descontentamento dos setores profissionais que, especialmente na esfera pública, se opuseram às reformas do primeiro Governo de José Sócrates -, Passos Coelho veio agora transformar esse passo de vulgar oportunismo político em doutrina política geral, decretando que, para realizar reformas profundas (por exemplo na justiça, que ele considera, aliás com razão, uma área de reforma prioritária) não é preciso confrontar os respectivos interesses profissionais organizados.

Mas será que essa teoria se aplica também às grandes reformas, por ele anunciadas (que aliás se dispensa de concretizar...), destinadas a reduzir o papel e o peso do Estado? É evidente que, ao tentar tranquilizar as corporações profissionais, o líder do PSD joga efetivamente num discurso político dúplice, sabendo que a agenda neoliberal não pode deixar de suscitar contestação por parte de grupos mais ou menos vastos. A promessa de não hostilizar as corporações só pode ter o propósito de tentar ocultar preventivamente o potencial de contestação e de conflitualidade que tais medidas naturalmente provocariam. Só que, como é patente, não há nenhuma sinceridade nisso. Pior do que esconder as reformas pretendidas, ou deixar de as enunciar, é tentar ignorar as resistências que elas não podem deixar de encontrar.

Como doutrina política, a tese das reformas políticas sem oposição das corporações não resiste à prova dos factos. Na realidade, só para falar em reformas que estão em curso ou têm de ser feitas, como é que se poderia por exemplo corrigir o escândalo do financiamento público das escolas privadas, sem enfrentar o respetivo lóbi? Como é que se consegue obrigar os bancos a reforçar a sua solidez e pagar mais impostos sem fazer face à oposição da respetiva associação? Como é que é possível abrir as profissões à concorrência sem vencer a oposição das ordens profissionais? Como é que é possível fazer a reforma da justiça (que o líder do PSD aliás destaca) sem contar com a oposição das poderosas corporações do setor, em geral muito conservadoras?

Quando o país, qualquer que seja o Governo, terá de se focar nos próximos anos na consolidação orçamental, na contenção da dívida pública e na competitividade externa da economia nacional, haverá verdadeiramente alguma reforma que não seja suscetível de lesar privilégios ou expetativas de um grupo profissional ou interesse económico?

Num país como o nosso, em que os grupos de interesse organizados, dento e fora do Estado, sempre foram os principais obstáculos à mudança, estará votada ao fracasso toda a reforma que antecipadamente contem com o aplauso dos seus adversários. Em Portugal, quase todos os exercícios reformistas desafiam interesses estabelecidos, tanto mais que estes encontram quase sempre generoso eco nos media. Todas as reformas que visem limitar ou extinguir privilégios setoriais ou profissionais ou promover a racionalização e eficiência dos serviços públicos estão antecipadamente condenadas a esse dilema: ou levam de vencida os que se lhe opõem ou ficam pelo caminho.

Mercê da sua coesão e organização, os grupos de interesse organizados gozam de visibilidade e de força incomparavelmente maiores do que a dos interesses gerais difusos que podem apoiar as reformas mais controversas. Os eleitores e os contribuintes em geral não têm sindicato nem organização representativa, muito menos a capacidade de manifestação e outros meios de ação coletiva de que as corporações profissionais e outras dispõem. Nessa desigual relação de forças só uma forte vontade política pode fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses setoriais.

Desistir de combater as corporações equivale a ceder aos seus interesses. Em vez da autoridade democrática do Estado teríamos o império privativo das corporações. Pior que um Estado limitado nas suas funções só um Estado diminuído na sua capacidade de as desempenhar, tornado refém dos interesses organizados, dentro ou fora dele.

[Público, terça-feira, 8 de Fevereiro de 2011]

This page is powered by Blogger. Isn't yours?