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19 de agosto de 2010

Em que ficamos? 

Por Vital Moreira

Se há algo em que a posição da nova liderança do PSD é clara é a rejeição do modelo de Estado social estabelecido entre nós pela Constituição de 1976 e que até agora teve o apoio de todos os partidos do arco constitucional, PSD incluído, que nunca o contestou nem no governo nem na oposição. É evidente que o PSD se prepara para romper o consenso constitucional de mais de três décadas (aliás, não somente nessa matéria). Todavia, está longe de ser clara a alternativa proposta por Passos Coelho. As duas linhas até agora aventadas não são conciliáveis entre si, antes pelo contrário.

Já há cinco anos o PSD sinalizava o seu abandono da plataforma político-constitucional sobre o Estado social entre nós, propondo a substituição do actual sistema público de pensões - baseado numa lógica de contribuição-repartição, em que cada geração activa financia as pensões das gerações precedentes - e substituindo-o por um sistema de capitalização individual, baseado na contribuição de cada um para um fundo de pensões. Ressalvadas as situações de falta de meios, o direito à pensão e o montante desta passavam a ser responsabilidade individual de cada um, sem passar por um sistema público universal. A proposta foi rejeitada, até por financeiramente incomportável, mas esse episódio marcou o início da mudança de paradigma do PSD em oposição ao modelo social existente.

Não era difícil adivinhar que essa mudança antecipava uma evolução afim nos sectores da educação e da saúde. De acordo com o modelo tradicional de serviço universal vigente entre nós, tanto o sistema público de ensino como o sistema público de saúde são essencialmente gratuitos para os utentes, descontadas as "taxas moradoras" na saúde e as propinas no ensino superior, sem prejuízo de cada um poder abdicar do sistema público e optar pelo sector privado, sem direito porém a ser reembolsado pelo Estado. Era evidente que nenhuma destas situações poderia ficar incólume numa perspectiva liberal de direita. As novas propostas do PSD nestas áreas consumam essa nova orientação ideológica.

O mais intrigante, porém, é a falta de consistência na alternativa "laranja" em relação a esses dois grandes serviços públicos, havendo duas propostas completamente distintas.

Antes do seu recente projecto de revisão constitucional, o PSD defendia a "liberdade de opção" entre o sistema público e o sistema privado na área da saúde e da educação, sem porém colocar aquele directamente em causa, devendo o Estado passar a custear o ensino privado e a medicina privada, nos mesmos termos que assume os encargos do sistema público, pagando as prestações recebidas pelos cidadãos em qualquer dos sistemas.

Assaz distinta é a proposta resultante das recentes propostas para a revisão constitucional. Nos seus termos explícitos, o Estado passaria a ter apenas a obrigação de suportar o custo das prestações de educação e de saúde das pessoas sem meios, ou seja, incapazes de pagar as suas necessidades de saúde e de educação. Implicitamente, todos os demais passariam a ter de assumir individualmente o pagamento das suas prestações de saúde e de educação, no caso da saúde provavelmente mediante o recurso ao sistema de seguros.

Ambas as vias visam, e teriam obviamente como resultado, acabar com a escola pública e com o SNS, como serviços públicos de vocação universal, os quais ficariam quando muito reduzidos a serviços mínimos para quem não tem meios para acesso ao sector privado. Quanto ao mais, porém, são notórias as diferenças entre as duas propostas

A via da chamada liberdade de opção é falsamente liberal sob o ponto de vista do papel do Estado. Este deixaria de ser prestador tendencialmente universal, como é actualmente, mas passaria a ser financiador universal, incluindo dos serviços privados que hoje, por opção dos interessados, não estão cobertos pelo Estado. Por isso trata-se de uma opção financeiramente insustentável. Se hoje o problema já é o da sustentabilidade financeira do SNS, imagine-se o que seria se o Estado passasse a assumir o pagamento de todas as prestações de saúde actualmente efectuadas no sector privado (as quais aliás aumentariam exponencialmente, por efeito do reembolso do Estado). O mesmo vale para o sistema de ensino. É evidente que para quem defende politicamente a redução dos encargos do Estado, trata-se de uma proposta a fingir, só para efeitos eleitorais.

Por isso, a segunda via - ou seja, a que reduz a tarefa do Estado a assumir subsidiariamente a cobertura de cuidados de saúde e de educação aos que não podem pagá-los pelos seus próprios meios -, embora seja a única consistentemente liberal, é politicamente menos vendável, porque exclui da esfera do financiamento público muitos daqueles que hoje beneficiam gratuitamente do SNS e do sistema público de educação ou que, mesmo optando pelo sector privado, têm o benefício das deduções fiscais associadas. Por isso, embora de forma incongruente com o seu novo credo liberal, o PSD opôs-se à redução das deduções fiscais das despesas de saúde e da educação, que não passam de um subsídio financeiro aos que preferem obter serviços de saúde e de educação no sector privado, desviando recursos que poderiam ser mais bem utilizados na melhoria da cobertura e da qualidade dos serviços públicos de educação e de saúde.

Seja como for, o PSD terá de esclarecer qual é afinal a sua opção verdadeiramente liberal para o modelo em vigor. Enquanto mantiver a actual indefinição e ambivalência, todas as especulações são possíveis e todas as dúvidas são legítimas acerca das verdadeiras alternativas do PSD para o Estado social que agora enjeita.

(Público, terça-feira, 27 de Julho de 2010)

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