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19 de agosto de 2010

Brincar às crises políticas 

Por Vital Moreira

Depois do aventureirismo da sua proposta de revisão constitucional - entretanto convenientemente esquecida depois de lançada como prioridade das prioridades -, o PSD acaba de proclamar bombasticamente o pré-anúncio de uma crise política a propósito da votação do próprio Orçamento do Estado para 2011. É caso para dizer que "o abismo atrai o abismo"...

De facto, o PSD bem sabe que a sua condição para votar o orçamento - a saber, que o Governo prescinda dos já anunciados cortes nos benefícios fiscais no IRS e que compense essa perda de receita com cortes adicionais na despesa pública - não pode ser satisfeita. Primeiro, porque a diminuição dos benefícios fiscais com despesas de educação e de saúde consta do plano de consolidação das contas públicas apresentado em Bruxelas, sendo elemento crucial da redução da "despesa fiscal", no valor de cerca de 500 milhões de euros. Segundo, porque seria incomportável acrescentar um corte abrupto equivalente a esse valor à já prevista redução da despesa pública para o próximo ano.

Não que essas propostas não sejam coerentes com os interesses agora prosseguidos pelo PSD, na sua nova veste liberal. Ao opor-se à redução dos benefícios fiscais, defende os interesses dos contribuintes mais abonados, que são quem mais tira proveito daqueles, nas suas despesas com escolas e clínicas privadas. Se um dos pontos-chave do novo programa liberal do PSD é reconhecer um "direito de opção" pelos sistemas privados de saúde e de educação e pôr o Estado (ou seja, todos os contribuintes) a suportar esses custos, então compreende-se que não queira prescindir dos actuais benefícios fiscais, que já funcionam como espécie de reembolso parcial, tanto maior quanto mais elevados forem os rendimentos dos interessados.

Ao exigir em contrapartida um corte adicional na despesa pública, o PSD, para além do dogma de "emagrecimento do Estado", sabe que isso só seria possível sacrificando as dotações financeiras dos serviços públicos e em especial as despesas sociais. Quem pagaria esse sacrifício suplementar seriam, portanto, os utentes dos serviços públicos em geral (especialmente na educação e na saúde), os beneficiários da protecção social e os funcionários públicos. Nada satisfaz mais o preconceito liberal contra o Estado do que a redução da capacidade de resposta dos serviços públicos, assim provando a "superioridade do sector privado".

Resta saber se tais interesses políticos - de resto não explicitamente confessados - podem servir de pretexto para "chumbar" o orçamento, abrindo uma crise política e prejudicando gravemente a capacidade do país para cumprir o seu programa de consolidação das finanças públicas (tal como se comprometeu perante a União Europeia), condição sine qua non da confiança dos mercados da dívida pública e da própria retoma económica. Além de saber que o Governo não pode satisfazer o seu ultimato político, o PSD também não pode deixar de saber que não tem nenhuma garantia de que sairia vencedor das eleições subsequentes (ninguém ganha eleições com um programa liberal de direita como esse, ainda por cima com a responsabilidade de uma crise política às costas) e que, mesmo que o conseguisse, a própria crise política nas actuais circunstâncias provocaria tais estragos políticos, financeiros e económicos, que só poderiam lesar gravemente a capacidade de acção do próximo Governo, qualquer que ele fosse. Ademais de ser uma leviandade política, por causa dos graves prejuízos para o país, tratar-se-ia também de um verdadeiro "tiro no próprio pé".

O PS não pode deixar de responder vigorosamente a esta temerária jogada do PSD. Primeiro, denunciando a irresponsabilidade da abertura de uma crise governativa nesta altura politicamente delicada. Segundo, rejeitando decididamente a chantagem política contida nas propostas do PSD, recusando ficar refém dela. Terceiro, denunciando os interesses políticos e sociais por detrás dessas propostas e explicando os seus efeitos nefastos, sobretudo para a sustentabilidade e qualidade dos serviços públicos (e exigindo do PSD a indicação dos sectores em que entende que pode haver cortes suplementares na despesa pública equivalentes a cerca de 500 milhões de euros). Quarto, defendendo mais uma vez a justiça social inerente à prevista redução diferenciada das deduções fiscais (que fica bem longe da sua extinção, como seria defensável), bem como o interesse vital em não destruir os serviços públicos. Quinto, responsabilizando desde já o PSD pelas tremendas consequências de uma crise governativa para a estabilidade política, financeira e económica do país e para a sua credibilidade junto das instituições europeias.

Sem perder a serenidade e o sentido de responsabilidade política, o PS não pode deixar de preparar a contra-ofensiva a mais esta leviandade política do PSD. Em vez de deixar criar desde já um clima de incerteza, com a possibilidade do "pântano político" que resultaria de um país sem orçamento durante muitos meses e incapaz de cumprir o programa de consolidação das contas públicas, interrompendo o processo de recuperação da confiança dos mercados financeiros e de redução do custo da dívida pública externa, o Governo não pode deixar de antecipadamente clarificar os termos da questão, definir as suas "linhas vermelhas" e anunciar desde já que não excluirá, se tal for necessário, suscitar uma questão de confiança no Parlamento sobre o orçamento ou pelo menos sobre a questão da redução dos benefícios fiscais, como meio de responsabilizar a oposição, e em especial o PSD, pela instabilidade política e financeira.

Seja como for, quando o PSD parece apostado numa incontinente vertigem política, cabe ao PS manter o norte perante mais este factor de perturbação e apresentar-se como esteio incontornável da estabilidade política e financeira do país

(Público, terça-feira, 17 de Agosto de 2010)

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