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25 de maio de 2010

Sustentabilidade financeira 

Por Vital Moreira

A ideia de que os tradicionais "serviços públicos económicos", tais como a água e o saneamento, a energia e os transportes, os correios e as telecomunicações, devem estar a cargo do Estado (ou outras autoridades territoriais) e que devem ser prestados abaixo dos custos, vivendo em maior ou menor parte à custa do orçamento, faz parte da mitologia da esquerda ortodoxa. Daí que a sua liberalização e privatização, bem como as tarifas correspondentes aos custos, sejam sistematicamente anatematizadas como inadmissíveis medidas neoliberais. Porém, a crise orçamental dos últimos anos e a necessidade de assegurar um equilíbrio estrutural das finanças públicas tornam esses preconceitos insustentáveis.

Diga-se à partida que a ideia de Estado social só requer que esses serviços básicos sejam acessíveis a toda a gente (princípio da universalidade), independentemente do lugar de residência e dos meios económicos. Mas não impõe o seu fornecimento direto pelo Estado (ou as regiões e municípios), nem tão-pouco a sua prestação geral abaixo do custo de produção, muito menos a título gratuito. Tirando os serviços públicos "não económicos", fora do mercado, que entre nós a Constituição impõe que sejam prestados pelo Estado de forma gratuita (ou quase gratuita), como a educação e a saúde, ou que são financiados por um fundo público de base contributiva mas de natureza repartitiva (como a segurança social), o princípio do Estado social apenas impõe o fornecimento público gratuito daqueles serviços ou equipamentos que por natureza o mercado e a iniciativa privada não proporcionam, ou só limitadamente o fazem (caso das bibliotecas, dos equipamentos desportivos, etc.).

No caso dos "serviços económicos de interesse geral" (SIEG), as garantias de universalidade e de não discriminação em função do local de residência e dos meios económicos podem bem ser asseguradas por meio de "obrigações de serviço público" impostas às empresas privadas que os prestam, mediante a devida compensação financeira, a qual aliás nem sequer tem de estar a cargo dos orçamentos públicos, podendo provir de um fundo alimentado por contribuições do conjunto dos utilizadores, como sucede entre nós com as telecomunicações e a energia. O mesmo valerá para os demais serviços em vias de liberalização e abertura à concorrência, como os correios e o transporte ferroviário.

Não consta que a liberalização e o princípio do utilizador-pagador tenham constituído uma mudança para pior na prestação desses serviços, nem quanto à cobertura territorial ou populacional nem quanto à sua qualidade. Pelo contrário, a concorrência e a racionalidade do mercado trouxeram inovação e eficiência, permitindo uma melhor equação qualidade-preço. As "obrigações de serviço público" asseguram a universalidade e a acessibilidade económica na fruição de tais serviços, podendo aquelas ser sempre adaptadas para corrigir as possíveis deficiências ou insuficiências que se verifiquem.

Ora, dois dos grandes cancros das nossas finanças públicas têm a ver com o défice tarifário em alguns desses serviços públicos, nomeadamente nos serviços de água e de transportes coletivos, especialmente os transportes públicos de Lisboa e Porto. Se é certo que, tratando-se em geral de "monopólios naturais", eles são insuscetíveis de abertura à concorrência no seu fornecimento (embora não seja de excluir a sua concessão a empresas privadas), nada justifica que tais serviços continuem à margem da racionalidade financeira, incluindo quanto à sua sustentação financeira por via essencialmente tarifária. Ora, o que sucede é que entre nós os serviços locais de água, de saneamento e de lixos continuam a ser fornecidos diretamente pelos municípios, em muitos casos como simples serviços municipais ou serviços municipalizados), muitas vezes sem correspondência entre as tarifas cobradas e os custos efetivos, enquanto nos transportes urbanos se mantém desde há décadas, apesar da sua gestão empresarial autónoma, uma lógica de endividamento estrutural, por evidente insuficiência das receitas tarifárias, desde sempre sujeitas a uma gestão política de conjuntura, e por falta de adequada contratualização das obrigações de serviço público.

O recente anúncio da ministra do Ambiente de próxima subida do preço da água constitui uma boa notícia, embora não passe da concretização tardia de uma mudança há muito devida neste setor, tanto por razões financeiras como ambientais. Só é pena que o ministro da Agricultura não esteja na iminência de anunciar idêntica medida para o preço da água dos perímetros de rega públicos, sucessivamente deteriorado pela falta de atualização, com a agravante de não se tratar de um serviço universal, visto que aproveita somente os beneficiários de tais obras hidroagrícolas.

No caso dos transportes urbanos de Lisboa e Porto, cujas empresas públicas acumulam défices e níveis de endividamento abissais (com os inerentes custos financeiros), a situação ainda é mais insustentável, dado que os seus encargos (a começar pelas compensações de serviço público e a cobertura do inevitável saneamento financeiro) recaem incompreensivelmente sobre o orçamento do Estado e não, como no resto do país, sobre os respetivos municípios, como sucede no resto do país. Constitui uma enorme injustiça que os demais cidadãos, em especial os residentes nos outros municípios dotados de transportes coletivos, que pagam integralmente, tenham depois de suportar também os défices orçamentais dos transportes coletivos de Lisboa e Porto, cujos municípios são desonerados das respetivas responsabilidades.

Se existe algo de fatal para o Estado social é a sua insustentabilidade financeira. 


[Publicoterça-feira, 18/05/2010]

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