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30 de dezembro de 2008

O que (não) diz Manuela 

Por Vital Moreira

O enorme ruído causado pela mal sucedida ironia da líder do PSD sobre a eventual necessidade de "suspender a democracia durante seis meses" para realizar reformas que encontram resistência obnubilou o essencial da sua tese, essa não irónica, de que "em democracia não é possível fazer reformas", justamente por causa da contestação que suscitam. O que ela não disse, mas ficou implícito no seu discurso, é que, se os serviços públicos não podem ser reformados em democracia, a alternativa não é forçar essas reformas, mas sim... acabar com tais serviços públicos.

A tese de Ferreira Leite sobre a impossibilidade das reformas contra as classes profissionais é insustentável sob todos os pontos de vista, desde logo quanto à sua consistência política. Custa a acreditar que a líder de um partido de vocação governativa, que se ufana de ser um partido reformista, tenha produzido as declarações tão desatinadas como as que produziu a propósito da reformas do serviços públicos. Que diriam Sá Carneiro e Cavaco Silva, que ficaram para a história justamente pelas suas reformas, incluindo contra corporações profissionais, sem precisarem de "suspender a democracia" para isso?

A tese também é indefensável sob um estrito ponto de vista democrático. O que limita e suspende a democracia não é realizar reformas contra a contestação dos profissionais, mas sim deixar de as fazer por causa dessa oposição. Defender que não se pode fazer reformas sem o consentimento dos que com elas são afectados significa reconhecer um poder de veto de facto, ilegítimo e antidemocrático. Se fosse necessária, e não somente vantajosa ou conveniente, a concordância dos grupos profissionais para validar as decisões políticas do poder democraticamente estabelecido, não seria isso uma intolerável limitação da democracia? Qual é a legitimidade dos grupos profissionais para vetarem as decisões dos órgãos democráticos do poder político?

Os serviços públicos existem para satisfazer os direitos e interesses dos utentes e não para defender os interesses dos respectivos grupos profissionais. Um Estado democrático não pode confundir-se com um Estado corporativo.

Como sucede muitas vezes na argumentação política, "nuns lados se põe o louro, noutras se bebe o vinho". Qual é a verdadeira "mensagem escondida" neste estranho discurso do PSD?

De facto, a tese da impossibilidade de reforma dos serviços públicos contra a hostilidade dos respectivos grupos profissionais é tão contrária à principiologia democrática e à tradição do PSD, que há-de haver outra explicação para a sua defesa neste momento, para além de uma grosseira manifestação de oportunismo político. O que é que pode levar o PSD a integrar-se numa fronda liderada pela esquerda antiliberal e pelos seus sindicatos, na oposição à reforma do sistema de ensino? Tem de haver uma explicação minimamente racional.

Ora não é difícil descobri-la. Vejamos o seguinte silogismo: não sendo possível reformar os serviços públicos contra a oposição dos respectivos grupos profissionais, e não sendo admissível utilizar métodos antidemocráticos para vencer essa resistência, então o único modo de sair desse dilema é... prescindir dos serviços públicos. QED! Não havendo serviços públicos, não há necessidade de os reformar. O sector privado do ensino e da saúde não causam dores de cabeça ao Estado, mesmo quando nele ocorrem graves litígios profissionais. Sempre são coisas alheias ao Estado.

Por conseguinte, a radical oposição de Manuela Ferreira Leite às reformas dos serviços públicos empreendidas pelo actual Governo, nomeadamente no sector da educação, está ao serviço da nova orientação pró-neoliberal do PSD, em favor da privatização dos mesmos serviços públicos, que vem fazendo carreira dentro do partido desde há uns anos a esta parte, independentemente das suas facções, e que encontra diversas explicitações públicas, desde o movimento "Compromisso Portugal" (onde personalidades do PSD marcaram o tom, algumas das quais fazem hoje parte da direcção de Ferreira Leite) até ao recente livro do ex-líder Marques Mendes, onde ele explicita e sistematiza as propostas políticas para uma nova governação PSD.

A oposição à reforma dos serviços públicos e o apoio à sua contestação pelos grupos profissionais alcança assim uma explicação plenamente racional. Quanto pior for o desempenho dos serviços públicos, mais se justifica a sua privatização, por motivo da sua insustentabilidade. As reformas que podem superar as insuficiências e deficiências dos serviços públicos não podem portanto ser bem-vindas, por enfraquecerem os argumentos para a sua privatização. Quanto mais eficaz for a contestação a essas reforma, designadamente a dos grupos profissionais, mais se garante a sua irreformabilidade. Daí o flirt do PSD com a luta sindical contra a reforma do sistema público de ensino. Seguramente que as coisas não seriam assim, se se tratasse de uma luta sindical contra os donos das escolas privadas...

Há, portanto, uma enorme diferença de motivação e de objectivos entre o PSD e a esquerda protestatária na solidariedade com os sindicatos de professores. Enquanto a segunda opta sistematicamente pela defesa de interesses profissionais, mesmo quando é evidente o conflito entre eles e o interesse dos serviços públicos, já a posição do PSD no apoio à contestação à reforma do sistema de ensino público é puramente táctica e instrumental, ao serviço de estratégia bem definida de desmantelamento do Estado social e dos serviços públicos que o consubstanciam.

O PSD deu-se conta de que a melhor maneira de alcançar esse objectivo consiste em apoiar a contestação corporativa e em decretar a impossibilidade de reformas que tenham a oposição dos grupos de interesse profissionais. Maquiavel não aconselharia melhor...

(Público, terça-feira, 25 de Novembro de 2008)

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