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19 de agosto de 2008

Um pretenso "bloco central" 

Por Vital Moreira

Há dias, o Diário de Notícias, fazendo a contabilidade da sessão legislativa passada, concluía pela existência de um "bloco central" legislativo, visto que o PSD aprovou mais de metade das leis ao lado do PS. Todavia, uma análise mais fina mostra que a conclusão é precipitada e enganadora. O contrário é que é verdade.

A própria peça jornalística desqualifica a conclusão política, ao registar que uma parte importante das leis foi aprovada só pelos socialistas, com oposição do PSD (e de outras bancadas) e que entre elas constam "alguns dos mais emblemáticos diplomas da sessão", a começar no Orçamento do Estado, continuando pela gestão e avaliação do desempenho da administração pública, as alterações ao Estatuto do Jornalista, a lei de segurança interna ou a da organização e investigação criminal. Ou seja, nas matérias politicamente mais importantes e mais sensíveis, não existiu afinal nenhum "bloco central", antes uma marcada diferença de fundo entre os dois principais partidos.

Se se fizesse a contagem das leis em relação a toda a actual legislatura, iniciada em 2005, também seria fácil concluir que, embora a maior parte das leis tenha sido aprovada com votos do PSD (sem esquecer as que foram aprovadas também por outros partidos, incluindo muitas aprovadas por unanimidade, já as leis politicamente mais importantes, designadamente as que efectivaram as principais reformas do actual Governo, não tiveram o seu apoio do PSD, mas sim em geral a sua oposição.

Foi assim no caso das leis que consubstanciaram a importante reforma das finanças públicas, no sentido da disciplina financeira e do reequilíbrio orçamental. Aí se contam designadamente a Lei das Finanças Locais, a Lei das Finanças Regionais, a extinção dos regimes especiais do sector público em matéria de segurança social e de saúde, sem esquecer obviamente os três orçamentos anuais, sem os quais nada teria sido possível. Por conseguinte, o Governo não pôde contar com o PSD na sua principal tarefa política.

O mesmo sucedeu nas leis de reforma do Estado e da Administração, a segunda grande reforma do Governo Sócrates. O PSD esteve contra o novo regime do emprego público, o regime disciplinar da função pública e o contrato de trabalho em funções públicas. Sem essas leis, porém, nada de relevante teria sido feito na modernização do Estado, no sentido de eficiência e da qualidade dos serviços públicos.

Outro tanto ocorreu nas mudanças do sector social, desde a decisiva reforma da segurança social (porventura a mais profunda desta legislatura, pelos seus efeitos na consolidação do sistema público de segurança social), passando pelas reformas na educação (onde o PSD apoiou oportunisticamente a luta sindical contra elas) até às reformas na saúde (onde o PSD fez coro com todas as movimentações populistas contra a consolidação do SNS).

Desnecessário se torna dizer, por último, que também não tiveram o apoio do PSD as leis que despenalizaram o aborto, no seguimento do respectivo referendo, nem a recente revisão do regime do divórcio. Em ambas as matérias, o que veio ao de cima foi a evidente deriva conservadora do PSD em matéria de liberdade individual e de regime das relações familiares.

A oposição do PSD foi ao ponto de fugir ao cumprimento de dois acordos estabelecidos com o Governo, a saber, em matéria de justiça e de sistema de governo das autarquias territoriais, tendo votado contra as leis que davam expressão aos compromissos que tinha publicamente assumido. Ou seja, nos poucos casos em que entendeu associar-se a certas mudanças, logo se arrependeu, incluindo num caso em que o seu voto era necessário - a lei eleitoral autárquica -, por se tratar de uma lei que carece de aprovação por maioria de 2/3. Pela mesma razão também não avançou a revisão da lei eleitoral para a AR, onde até se poderia antecipar alguma convergência de interesses...

Neste quadro, aliás incompleto, não faz nenhum sentido falar num "bloco central" em matéria legislativa. Pelo contrário, o que se verificou ao longo desta legislatura foi uma acentuada diferenciação político-ideológica entre os dois partidos, desde a gestão das finanças públicas até ao regime dos serviços sociais, desde a reforma do Estado e da justiça até às questões civilizacionais. De resto, dado que o PSD raramente ficou sozinho na sua intransigência oposicionista, é fácil concluir que se não fosse a sua maioria absoluta, o PS não teria conseguido levar a cabo nenhuma das grandes reformas que encetou e em boa parte concluiu, pelo menos no plano legislativo.

Por isso, não têm fundamento as apressadas especulações sobre uma suposta falta de determinação oposicionista do PSD (alguém chegou a falar numa "oposição de opereta") e sobre a "natural predisposição" de ambos os partidos para uma coligação de governo, caso a necessidade o imponha. A realidade desta legislatura mostra, ao invés, que o PSD optou por acentuar as suas divergências políticas em relação ao PS, sendo evidente que, quando apresentou propostas alternativas (como no caso da segurança social e na saúde), o PSD abandonou o próprio consenso político em que se baseou a construção do "Estado social" entre nós desde 1976, em favor de opções claramente mais liberais.

De resto, por muito que pese aos extremos políticos, só o preconceito pode apagar as diferenças entre esquerda e a direita, mesmo na sua versão moderada. Admitindo embora que o PS é hoje menos "socialista" e mais social-democrata, o PSD foi-se tornando sociologicamente mais conservador e mais liberal nas políticas sociais. Por isso, contrariando uma ideia corrente, há razões para crer que doravante não vai ser menor do que até agora a confrontação política entre os dois partidos de alternância governativa em Portugal.

(Público, 3ª feira, 5 de Agosto de 2008)

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