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11 de junho de 2008

Equívocos à esquerda 

Por Vital Moreira

Há quem na área do PS (como Manuel Alegre) pense que há espaço para convergências à esquerda mais do que pontuais, inclusive para efeitos governativos. Trata-se porém de um equívoco que não resiste a uma análise séria do que, tanto em termos políticos como doutrinários, separa o PS, como partido de governo, e os partidos à sua esquerda, como partidos de protesto.

Antes de mais, importa registar que o PCP e o BE têm sido os mais aguerridos opositores da governação socialista, tanto em termos políticos como sociais. Ambos têm lançado os maiores anátemas sobre as reformas levadas a cabo pelo Governo, transformando-o no "inimigo principal". Se dependesse de ambos, não teria havido disciplina das finanças públicas, nem reforma da segurança social, nem supressão dos regimes especiais no sector público, nem encerramento de centenas de escolas sem condições, nem fecho de maternidades e pseudo-urgências sem qualidade, nem reforma da Administração Pública, etc. etc.

Fazendo gala do seu conservadorismo atávico, ambos os partidos da extrema-esquerda atiram contra tudo o que mexe com qualquer interesses instalados, apoiando indiscriminadamente todos os protestos, sejam de operários ou de juízes ou generais, sejam de pensionistas pobres ou de beneficiários de altas pensões, sejam de deficientes sem rendimentos ou de titulares de altos rendimentos. Com inexcedível irresponsabilidade política e financeira e com geral vazio de ideias e de soluções exequíveis, as suas propostas vão sempre dar no mesmo: mais despesa pública e mais impostos, independentemente das suas consequências sobre o equilíbrio das finanças públicas, a sustentabilidade do Estado social e a competitividade da economia nacional.

As inegáveis melhorias nas políticas sociais -- tanto mais meritórias por serem desenvolvidas em situação de constrição orçamental -- são sistematicamente desvalorizadas, se não vilipendiadas. Na sua visão maniqueísta, não vale nada o complemento de rendimento para idosos pobres, a majoração do aumento das pensões mais reduzidas e do salário mínimo, a elevação do abono para famílias numerosas, os apoios especiais à maternidade, o reforço da acção social escolar, o alargamento da cobertura do SNS (saúde oral, vacina contra o cancro do colo do útero, etc.), a rede de equipamentos sociais, etc. Em vez de reconhecerem o papel dessas medidas na equidade social e na luta contra a pobreza -- as mais relevantes desde a criação do rendimento mínimo garantido em 1996 --, insistem na denúncia de aumento da pobreza entre nós, que nenhum indício confirma, antes pelo contrário.

Se existe uma verdadeira expressão de "inimizade política", tal é a hostilidade que o PCP e o BE votam ao PS, quando no Governo, sem paralelo com a que demonstram face a governos de direita. Nestes termos, que sentido faz pensar na possibilidade de qualquer entendimento ou acção conjunta entre forças tão desavindas?

Na imprevisibilidade de qualquer mudança na estratégia política dos seus protagonistas, não é lícito alimentar nenhuma ilusão acerca de um hipotético entendimento governamental do PS com os partidos à sua esquerda, caso aquele venha a ganhar de novo as eleições de 2009 sem porém repetir a maioria absoluta alcançada em 2005.

Pura e simplesmente, não se afigura possível harmonizar num mesmo projecto governativo concepções políticas tão diferentes como as que a realidade desde há muito evidencia, entre o PS, por um lado, e o PCP e o BE, por outro lado (sem esquecer as diferenças e rivalidades entre estes). Como partido de esquerda governante, o PS está naturalmente alinhado com as modernas orientações da social-democracia europeia, assentes na "economia de mercado regulada", na eficiência e sustentabilidade do Estado social e no aprofundamento da integração europeia. Em nada disto pode haver convergência com as esquerdas da esquerda, nas suas diversas expressões, que não abandonaram as suas bases doutrinárias radicadas no marxismo-leninismo, no trotskismo e no maoísmo, e que continuam acantonadas numa vocação de protesto, visceralmente "anticapitalistas", contrárias a qualquer medida de racionalização do Estado social e radicalmente hostis à integração europeia (como mostrou a sua oposição ao Tratado de Lisboa).
Não existem pontes para clivagens tão amplas. Que compromisso poderia existir por parte do BE ou do PCP com o desempenho da economia essencialmente baseado na iniciativa empresarial, no investimento privado e na concorrência, bem como na produtividade do trabalho e na competitividade externa das empresas, sem as quais não existe crescimento, nem emprego, nem receita fiscal para sustentar políticas sociais? Que adesão poderia esperar-se de qualquer daqueles partidos a uma política de exigência, eficiência e responsabilidade dos serviços sociais públicos (saúde, educação, etc.), sem a qual fica comprometida a própria sustentabilidade do Estado social? Que solidariedade poderia esperar-se deles em matéria de integração europeia e do seu aprofundamento, sem a qual não é pensável o desenvolvimento económico nem o progresso social entre nós?
Devem pois desenganar-se os que sonham a prazo com uma "frente de esquerda", caso o PS ganhe as eleições do próximo ano sem maioria absoluta. Do PCP e do BE o PS só pode esperar oposição política sem tréguas, e não o apoio de que pode carecer para uma governação sustentável à esquerda. Como se mostrou em 1976-79 e em 1999-2001, um governo minoritário não consegue aguentar-se muito tempo em tempos politicamente difíceis. Caso essa hipótese se verificasse, cedo ou tarde os portugueses teriam de ser de novo chamados a decidir se querem um governo que possa governar à esquerda de forma responsável ou um governo refém das oposições (à direita e à esquerda) e incapaz de levar a cabo as suas propostas políticas.

Público, terça-feira, 10 de Junho de 2008

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