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15 de maio de 2008

Equilíbrios em ambientes normalmente conflituais 

Por Vital Moreira

É muito provavelmente a última reforma política desta legislatura, a revisão do Código de Trabalho. Terá sido também a mais difícil de equacionar e de formular, numa área de vocação eminentemente conflitual, como é a das relações de trabalho. O primeiro mérito da proposta tornada pública, para além da sua existência mesma, é a sua moderação e aparente falta de ambição, renunciando a mudanças radicais. Embora parecendo que não, o segundo mérito da proposta está na sua recepção crítica por ambas as "partes sociais".

À partida, havia dois desafios a enfrentar. Primeiro, diminuir a rigidez das nossas relações de trabalho - sistematicamente apontada como das mais altas no conjunto das países da OCDE -, a qual penaliza a gestão e a competitividade das empresas, e logo também a criação de emprego. Segundo, reduzir os factores de precariedade do emprego, ligada ao abuso de contratos a prazo e dos "recibos verdes", a qual estabelece uma iníqua segmentação entre quem tem uma relação de emprego estável e goza de todas as garantias de estabilidade e quem a não tem, e por isso está condenado a viver em permanente incerteza sobre a sua situação laboral.

Quanto à luta contra a rigidez das relações laborais, a proposta de reforma avança com duas mudanças, nenhuma delas muito original nem muito inovadora. A primeira consiste num alargamento marginal do conceito de justa causa de despedimento individual - a noção de "inadaptação funcional" -, sem porém a descaracterizar, bem como na simplificação do processo "administrativo" de despedimento, remetendo a sua justificação para os tribunais. A segunda, e mais importante, tem a ver com a adaptação dos tempos de trabalho, mediante acordo dos trabalhadores, permitindo aumentar o tempo de trabalho semanal durante certos períodos, compensando-o com períodos de menor trabalho noutros períodos. Trata-se de um mecanismos essencial para permitir às empresas responder melhor à variação do ciclo de produção, de acordo com os ritmos do mercado.

Mais novidades apresentam as propostas quanto à luta contra a precariedade. Para além da redução do tempo máximo de contrato a prazo para metade, a grande inovação está na diferenciação das contribuições patronais para a segurança social, tornando-as mais onerosas no caso de contratos a prazo e menos pesadas no caso de trabalhadores com contratos sem termo. Além disso, no caso dos "recibos verdes", o empregador passa a suportar uma parte considerável da contribuição social que hoje recai exclusivamente sobre o trabalhador independente.

Trata-se de um verdadeiro "ovo de Colombo", jogando com a linguagem que as empresas melhor entendem, ou seja, os custos. Tornando mais caro o trabalho precário e mais barato o trabalho permanente, cria-se um poderoso incentivo para preferir o segundo ao primeiro, sem porém impossibilitar o recurso ao trabalho temporário quando tal se justifique nos termos da lei, cujas condições obviamente não são liberalizadas.

Sem surpresa, não tardaram as reacções críticas dos sectores mais radicais, à esquerda e à direita. No primeiro caso, de acordo com a sua habitual postura imobilista, desvalorizou-se o impacto das medidas contra a precariedade e denunciou-se uma imaginária liberalização dos despedimentos sem justa causa, que não encontra nenhum suporte na reforma proposta. No segundo caso, surgiram de novo as propostas de ampla desregulação das relações de trabalho, reclamando a possibilidade de despedimentos para "renovação" dos quadros de pessoal e rejeitando o encarecimento dos contratos a prazo.

Nem uns nem outros têm razão. Por um lado, não se pode ignorar que a excessiva rigidez das relações de trabalho, impedindo a adaptabilidade das empresas ao mercado, não favorece nem o aumento do emprego nem a luta contra a precariedade do emprego, sendo antes a principal razão para a inaceitável divisão do mundo do trabalho, entre os que gozam de uma estabilidade hiperprotegida e os que não beneficiam de garantias mínimas de segurança, ou sequer de uma relação de emprego, ou seja, os mais desprotegidos. O conforto de uns gera a desprotecção dos outros. Por outro lado, porém, não se pode pretender contornar as garantias constitucionais da segurança no emprego nem liberalizar as formas de emprego efémero e sem garantias, nem muito menos pactuar com a fraude à própria noção de relação de trabalho, mediante fictícios contratos de prestação de serviços. Admitir o despedimento individual por livre decisão do empregador, sem um motivo específico, razoável e verificável, seria sujeitar os trabalhadores à arbitrariedade ou à perseguição individual. Ora os interesses dos empregadores não podem prevalecer contra a liberdade e a dignidade dos trabalhadores.

Dificilmente existe um terreno mais espinhoso para um governo de esquerda do que tentar reformar as relações laborais, por mais contidas e razoáveis que sejam as propostas, correndo sempre o risco de ser acusado pela direita de preconceito contra os interesses das empresas e de ser denunciado pela esquerda mais radical por "traição" aos direitos e interesses dos trabalhadores. Tanto mais num país onde o movimento sindical se encontra dominado por uma visão eminentemente conservadora das posições adquiridas e pelo preconceito maniqueísta de que tudo o que pode favorecer as empresas é necessariamente contra os trabalhadores e onde as posições do patronato são em geral tradicionalmente reaccionárias, agora doutrinariamente suportadas numa visão ultraliberal que tende a negar qualquer especificidade às relações de trabalho nem ao incontornável desequilíbrio das duas partes nessa relação.

Quando uma proposta de revisão da legislação laboral pode pretender, com bons argumentos, beneficiar simultaneamente as empresas e os trabalhadores, então é caso para dizer que se vai no bom caminho.

(Público, terça-feira, 29 de Abril de 2008)

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