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27 de março de 2008

O "mal-estar" nacional 

Por Vital Moreira

Tirando pequenos períodos de entusiasmo e de auto-estima, a nossa opinião sobre o estado do país é quase sempre pior do que os factos. Isso faz parte do "carácter" nacional. Porventura, o "mal-estar difuso" de que alguns agora falam, embora sem cuidarem de identificar os respectivos indicadores objectivos, pertence também a essa síndroma autodepreciativa em que nos comprazemos.

A autoflagelação nacional inclui muitos casos de notória assimetria entre a realidade social e a sua percepção pela opinião pública. Tomemos alguns exemplos correntes.

Há poucos dias, foi conhecido publicamente um inquérito de opinião, segundo o qual mais de 80 por cento dos portugueses pensam que a pobreza em Portugal tem aumentado substancialmente nos últimos anos e que somente 5 por cento pensam o contrário. Ora, entre 1996 e 2006 (últimos números conhecidos) a taxa de pobreza entre nós, medida pelo critério oficial europeu, decresceu três pontos, uma das maiores descidas na UE, aproximando-nos da média europeia.

Um segundo exemplo típico respeita ao aumento da criminalidade. Os inquéritos de opinião revelam invariavelmente que uma maioria das pessoas crê que a criminalidade violenta está a aumentar de ano para ano. Mais uma vez, não é verdade. O número de homicídios tem descido consistentemente, de 408, em 1995, para 135, em 2007 - uma notável redução, portanto -, e Lisboa conta-se entre as capitais mais seguras na Europa.

Um terceiro exemplo tem a ver com a corrupção. A ideia dominante na opinião pública é a de que em Portugal a corrupção é omnipresente e está em crescimento. Contudo, embora não estejamos bem colocados internacionalmente nesse aspecto, os dados não confirmam aquele cenário, e os observadores internacionais mais qualificados, como a Transparency Internacional, colocam Portugal muito longe dos países mais corruptos, ficando em 26.º lugar nos países menos corruptos a nível mundial e em 14.º lugar na UE.

Não é necessário multiplicar exemplos (mortes na estrada, cuidados de saúde, desempenho dos serviços públicos, etc.) para revelar um padrão de avaliação muito pessimista da realidade nacional.

Embora haja vários factores sociológicos e psicológicos profundos que justificam esta tendência para a auto-escarmentação nacional - desde os insucessos das sucessivas tentativas de modernização desde o século XVIII até à frustração das grandes esperanças do 25 de Abril e das promessas de convergência com a Europa depois da nossa adesão à União Europeia -, entre as razões explicativas contam-se também os próprios órgãos de comunicação, que privilegiam sistematicamente os traços mais sombrios da realidade social, desprezando ou desvalorizando os aspectos positivos. As percepções dominantes são consideravelmente influenciadas por um desequilibrado tratamento mediático, tanto em termos noticiosos como em termos de opinião.

O tratamento noticioso é claramente enviesado para seleccionar e sublinhar os lados mais negativos da actualidade. Em princípio, só as más notícias são notícias, mesmo quando não são verdadeiras. É notícia o aumento da criminalidade, não a sua redução; a subida da inflação, não a sua descida; a elevação do desemprego, não o seu decréscimo; a erupção de um surto infeccioso, nunca a sua debelação; uma maior área de floresta ardida pelo Verão, não uma menor extensão; e assim por diante. Há dias, por exemplo, um jornal "popular" anunciava em manchete que os encargos dos empréstimos para compra de casa iam "voltar a aumentar", mas provavelmente nunca houve nem haverá nenhuma manchete a anunciar a descida de tais encargos, quanto tal ocorre. Há uma propensão atávica da generalidade dos media - incluindo os de serviço público - para uma certa dose de populismo noticioso, sublinhando a grosso os aspectos socialmente mais chocantes da realidade social e omitindo ou depreciando em geral as notícias que poderiam atenuar aquela impressão negativa.

Ao tratamento noticioso acresce o comentarismo dominante, onde avulta um estilo oracular habitualmente apostado em negar qualquer progresso e qualquer perspectiva de saída favorável para o país. Segundo essa visão, falhámos todos os desafios da história recente e estamos condenados a arrastar-nos numa "apagada e vil tristeza" até ao fim dos séculos. Qualquer acontecimento mais grave é transformado numa demonstração inequívoca da nossa incapacidade e da nossa condenação. Por exemplo, há anos a queda da ponte de Entre-os-Rios mostrou a irremediável irresponsabilidade nacional. (Entretanto, caíram pontes em vários outros países, incluindo nos Estados Unidos). A recente notícia da agressão de uma professora por uma aluna é a prova da irremissível falência do nosso sistema de ensino ou da ruína da família (conforme a perspectiva). (Entretanto, fenómenos idênticos são comuns noutros países, incluindo casos de utilização de armas de fogo...).

Acresce que os programas políticos de reforma e de modernização são sempre encarados com grande desconfiança ou displicência, e quase sempre antecipadamente declarados como votados ao fracasso. Enquanto uns se afincam em negar a existência de qualquer verdadeira reforma, outros apressam-se a denunciar os custos das reformas e a apoiar todas as resistências às mesmas, por mais corporativas ou injustificadas que sejam. Pelo contrário, toda a firmeza na condução de reformas modernizadoras corre o risco de ser acoimada de autoritarismo ou, mesmo, de "totalitarismo" (como agora entrou na moda).

É evidente que a vulnerabilidade da opinião pública ao enviesamento informativo e opinativo é tanto maior quanto mais atávica for a propensão para o derrotismo social e quanto menor for o nível de educação e de autonomia crítica na sociedade. Manifestamente, estamos mal colocados em ambos esses critérios. Comparada com as reformas económicas e políticas, a "reforma das mentalidades", em que António Sérgio tanto insistiu, continua a ser a mais difícil.

(Publico, 3ª feira, 25 de Março de 2008)

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