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29 de janeiro de 2007

Doze razões 

por Vital Moreira

Sou a favor da despenalização do aborto, nas condições e limites propostos no referendo, ou seja, desde que realizado por decisão da mulher, em estabelecimento de saúde, nas primeiras dez semanas de gravidez. Eis uma recapitulação das minhas razões.
1.ª - O que está em causa no referendo é decidir se o aborto nessas condições deve deixar de ser crime, como é hoje, sujeito a uma pena de prisão até 3 anos (art. 140.º do Código Penal). Por isso, é francamente enganador chamar ao referendo o "referendo do aborto" ou "sobre o aborto", como muita gente diz. De facto, não se trata de saber a posição de cada um sobre o aborto (suponho que ninguém aplaude o aborto), mas sim de decidir se a mulher que não se conforma com uma gravidez indesejada, e resolve interrompê-la, deve ou não ser perseguida e julgada e punida com pena de prisão.
2.ª - Não há outro meio de deixar de punir o aborto senão despenalizando-o. Enquanto o Código Penal o considerar crime (salvas as excepções actualmente já existentes), ninguém que pratique um aborto está livre da humilhação de um julgamento e de punição penal. Quem diz que não quer ver as mulheres punidas, mas recusa a despenalização, entra numa insanável contradição. Não faz sentido manter o aborto como crime e simultaneamente defender que ele não seja punido.
3.ª - A actual lei penal só considera lícito o aborto em casos assaz excepcionais (perigo grave para vida ou saúde da mulher, doença grave ou malformação do nascituro, violação). Ao contrário do que correntemente se diz, a nossa lei não é igual à espanhola, que é bastante mais aberta do que a nossa e tem permitido uma interpretação assaz liberal, através da cláusula do "perigo para a saúde psíquica" da mulher. Por isso, a única saída entre nós é a expressa despenalização na primeira fase da gravidez, alterando o Código Penal, como sucede na generalidade dos países europeus.
4.ª - A despenalização sob condição de realização em estabelecimento de saúde autorizado (por isso não se trata de uma "liberalização", como acusam os opositores) é o único meio de pôr fim à chaga humana e social do aborto clandestino. Esta é a mais importante e decisiva razão para a defesa da despenalização. Nem a ameaça de repressão penal se mostra eficaz no combate ao aborto, nem a sua legalização faz aumentar substancialmente a sua frequência. A única coisa que se altera é que o aborto passa a ser realizado de forma segura e sem as sequelas dos abortos clandestinos mal-sucedidos. Por isso, se pode dizer que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública.
5.ª - Se se devem combater os factores que motivam gravidezes indesejadas, é humanamente muito cruel tentar impô-las sob ameaça de julgamento e prisão. É certo que hoje há mais condições para evitar uma gravidez imprevista (contraceptivos, planeamento familiar, etc.). Mas a sociologia é o que é, mostrando como essas situações continuam a ocorrer, em todas as classes e condições sociais, mas especialmente nas classes mais desfavorecidas, entre os mais pobres e menos cultos, que acabam por ser as principais vítimas da proibição penal e do aborto clandestino (até porque não têm meios para recorrer a uma clínica no estrangeiro...).
6.ª - A despenalização do aborto até às 10 semanas é uma solução moderada e, mesmo, comparativamente "recuada", visto que em muitos países se vai até às 12 semanas. Por um lado, trata-se de um período suficiente para que a mulher se dê conta da sua gravidez e possa reflectir sobre a sua interrupção em caso de gravidez indesejada. Por outro lado, no período indicado o desenvolvimento do feto é ainda muito incipiente, faltando designadamente o sistema nervoso e o cérebro, pelo que não faz sentido falar num ser humano, muito menos numa pessoa. Como escrevia há poucos dias um conhecido sacerdote católico e professor universitário de filosofia: "A gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns "marco" que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído."
7.ª - Só a despenalização e a "desclandestinização" do aborto é que permitem decisões mais ponderadas e reflectidas, incluindo mediante aconselhamento médico e psicológico. Embora o referendo não verse sobre os procedimentos do aborto legal, nada impede e tudo aconselha que a lei venha a prever uma consulta prévia e um período de dilação da execução do aborto, como existe em alguns países. Aliás, o anúncio de tal propósito poderia ajudar o triunfo da despenalização no referendo, superando as hesitações daqueles que acham demasiado "liberal" o aborto realizado somente por decisão desacompanhada da mulher.
8.ª - A despenalização do aborto nos termos propostos não viola o direito à vida garantido na Constituição, como voltou a decidir o Tribunal Constitucional, na fiscalização preventiva do referendo. No conflito entre a protecção da vida intra-uterina e a liberdade da mulher, aquela nem sempre deve prevalecer. O feto (ainda) não é uma pessoa, muito menos às dez semanas, e só as pessoas são titulares de direitos fundamentais e, embora a vida intra-uterina mereça protecção, inclusive penal, ela pode ter de ceder perante outros valores constitucionais, nomeadamente a liberdade, a autodeterminação, o bem-estar e o desenvolvimento da personalidade da mulher. Mas a punição do aborto continua a ser a regra e a despenalização, a excepção.
9.ª - A decisão sobre a legalização ou não do aborto não pode obedecer a uma norma moral partilhada só por uma parte da sociedade. Ninguém pode impor a sua moral aos outros. É evidente que quem achar, por razões religiosas ou outras, que o aborto é um "pecado mortal" ou a violação intolerável de uma vida, não deve praticá-lo. Pode até empregar todo o proselitismo do mundo para dissuadir os outros de o praticarem. Mas não tem o direito de instrumentalizar o Estado e o direito penal para impor aos outros as suas convicções e condená-los à prisão, caso as não sigam. A despenalização do aborto não obriga ninguém a actuar contra as suas convicções; a punição penal, sim.
10.ª - A despenalização é a solução a um tempo mais liberal e mais humanista para a questão do aborto. Liberal - porque respeita a liberdade da mulher quanto à sua maternidade. Humanista - porque é o único antídoto contra as situações de miséria e de humilhação que o aborto clandestino gera. Quando vemos tantos autoproclamados liberais nas hostes do "não", isso é a prova de que o seu liberalismo se limita à esfera dos negócios e da economia, parando à porta da liberdade pessoal. Quando vemos tanta gente invocar o "direito à vida" do embrião ou do feto para combater a despenalização, ficamos a saber que para eles vale mais impor gravidezes indesejadas (e futuros filhos não queridos) do que a defesa da liberdade, da autonomia e da felicidade das pessoas. Se algo deve ser desejado, devem ser os filhos!
11.ª - Na questão da despenalização do aborto é verdadeiramente obsceno utilizar o argumento dos custos financeiros para o SNS. Primeiro, o referendo não inclui essa questão, deixando para a lei decidir sobre o financiamento dos abortos "legais". Segundo, mesmo que uma parte deles venham a ser praticados no SNS, o seu custo não deve comparar desfavoravelmente com os actuais custos da perseguição penal dos abortos, bem como das sequelas dos abortos mal sucedidos.
12.ª - A despenalização do aborto, nos termos moderados em que é proposta, será um sinal de modernização jurídica e cultural do país, colocando-nos a par dos países mais liberais e mais desenvolvidos, na Europa e fora dela (Estados Unidos incluídos). A punição penal do aborto situa-nos ao lado de um pequeno número de países mais conservadores e mais influenciados pela religião (como a Irlanda e a Polónia). Mas por que motivo um Estado laico deve pautar o seu Código Penal por normas religiosas?

(Público, Terça-feira, 23 de Janeiro de 2007)

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