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4 de outubro de 2006

Afeganistão: lições da insegurança 

por Ana Gomes

O Representante Especial de Javier Solana no Afeganistão, Francesc Vendrell, é um optimista, pelos anos em que perseverou nas Nações Unidas por Timor-Leste. Mas a situação no Afeganistão não está para optimismos: "as duas últimas semanas têm sido mesmo más", sublinhou há dias no Parlamento Europeu.

Os ataques suicidas aumentaram exponencialmente nos últimos meses, em especial na provincia de Kandahar (sul do Afeganistão). 2006 é, de longe, o ano mais sangrento para a ISAF (a missão da NATO) desde a invasão de 2001, necessária e legítima, nos termos da Carta da ONU: 130 soldados mortos.

Duros combates marcaram a recente Operação Medusa da NATO, na provincia de Kandahar, infligindo baixas pesadas aos Talibãs. Mas no combate ao narcotráfico, a derrota é total: entre 2005 e 2006, a área de cultivo de ópio aumentou 50%. O Afeganistão representa hoje 92% da oferta global de ópio - verdadeira ADM assestada à Europa, ouve-se em meios NATO. As fontes de financiamento dos Talibãs - 'fundações islâmicas' nos países do Golfo e o narcotráfico - continuam intactas. No Paquistão continuam movimentações e campos de treino dos Talibãs; nas províncias, a autoridade de Cabul é vista como corrupta, ou, na melhor das hipóteses, ausente...

Como explicar a degradação, num país que em 2002 se prometia não voltar a abandonar nas mãos do terrorismo e do obscurantismo?

Depois da derrota dos Talibãs em 2002, a diplomacia americana, liderada por Colin Powell, propôs o envio de um grande força multinacional de manutenção de paz. Mas o Secretário da Defesa recusou, alegando tradicional aversão dos afegãos em relação a tropas estrangeiras. O consenso hoje é que os afegãos, longe de rejeitar a presença internacional, estavam sedentos de estabilidade e ansiosos por ela, naquela altura. Ora Rumsfeld decidiu só manter 8.000 tropas americanas, concentradas no Sul e no Leste do país, à caça da Al-Qaeda. Durante 18 decisivos meses, a coligação liderada pelos EUA teve zero tropas fora de Cabul. E por isso hoje estão no terreno 20.000 tropas da NATO e 20.000 americanas, a tentar recuperar o tempo perdido e a pagar o preço por querer reconstruir países pelo barato... Porque um outro grave erro foi também não se haver realmente investido na reabilitação e reconstrução do país.

Os erros não acabam aqui: certos membros da ISAF interpretam o mandato, sob o Capítulo VII da Carta da ONU, como sendo de 'manutenção de paz' e não de 'imposição de paz', logo não se dispõem a intervenções mais robustas. Enquanto puderam, trataram de fugir à evidência de que não podiam deixar os EUA combater sozinhos os Talibãs. Muitos ainda impõem limitações operacionais ("caveats") aos seus contingentes.

Depois há o óbvio: recursos insubstituíveis foram desviados do teatro afegão, quando em 2003 se lançou a aventura desastrosa no Iraque. Os resultados estão à vista...

Há lições a tirar:
Primeiro, não chega organizar eleições para ter governo e parlamento legítimos; nem chega imprensa livre, melhoria jurídica da situação das mulheres, inclusão dos senhores da guerra no processo político: nada disto chega para a sustentabilidade de qualquer operação de 'construção nacional' se não houver segurança. A pacificação nos Balcãs deves-se justamente à forte presença de tropas internacionais durante longo período de tempo (11 anos depois, a UE ainda tem 6.000 soldados na Bósnia; 7 anos depois ainda estão 18.000 tropas NATO no Kosovo).

Segundo, a presença internacional pós-conflito tem que ser imediatamente forte e visível: uma vez reacendidos focos de conflito e posta em causa a legitimidade da presença internacional, é muito difícil recuperá-la. Nesse sentido, a fé cega do Pentágono na capacidade de forças locais assumirem rapidamente responsabilidades de segurança - especialmente num país com a história fratricida do Afeganistão - é tão ilusória como nas ADM de Saddam.

Finalmente, mais cedo ou mais tarde há que correr riscos. E, por isso, mais vale cedo, do que tarde. Não se cria segurança sem tropas no terreno, sem arriscar vidas. A Europa não é credível se ficar longe das áreas inseguras nos países em conflito ou a sair dele. Se mandar contingentes apenas para missões inofensivas. Se deixar os EUA (quando estão no terreno, o que não acontece no Congo e Líbano) carregar o fardo das missões de combate, enquanto tropas europeias se limitam a construir pontes. Sem segurança, as pontes voltarão a cair, sob golpes de obus. E as escolas serão usadas como campos de tiro.

Por isso, é errado pensar - e fazer crer - que os 140 paraquedistas portugueses recentemente deslocados para Kandahar não correm mais riscos do que em Cabul. Kandahar é, realmente, zona muito mais perigosa. Quem serve nas Forças Armadas sabe que corre riscos. Os governantes e responsáveis políticos têm o dever de explicar às suas opiniões públicas que se paga um preço pela segurança. E que a segurança das ruas de Lisboa ou do Porto também passa pela segurança de paragens distantes e inóspitas como Panjwayi, no sul do Afeganistão.


(Publicado no DIÁRIO DE NOTICIAS em 1.10.06

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