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2 de setembro de 2005

Para além de Gaza 

por Vital Moreira

Ainda ontem, poucos dias depois de consumada a retirada dos colonatos da faixa de Gaza, o Governo de Sharon anunciava a intensificação de um megacolonato na Cisjordânia. Se era precisa uma prova de que a retirada de Gaza não faz parte de uma súbita conversão de Israel ao "roteiro para paz" na Palestina, ela aí está. Infelizmente, só podem surpreender-se os crédulos.
De facto, a decisão unilateral de desmantelar os esparsos colonatos da pequena e superpovoada faixa de terra entre Israel e o mar Mediterrâneo não foi produto de uma repentina benevolência do Governo israelita nem em relação à comunidade internacional, que pressiona Israel para a descolonização dos territórios ocupados, nem muito menos em relação aos palestinianos. Como foi devidamente explicado, Gaza custava a Israel mais do que valia. Garantir a segurança de alguns escassos milhares de colonos judeus, em uns poucos colonatos espalhados no meio de mais de dois milhões de palestinianos, era demasiado exigente em termos militares e financeiros.
É certo que, com essa retirada, Sharon, que foi ele mesmo outrora o instigador da política de colonização judaica dos territórios ocupados, provocou a ira e o ódio dos colonos e o fanatismo dos fundamentalistas religiosos, partidários do Grande Israel, desde o Mediterrâneo ao Jordão. Mas tal utopia revelou-se em qualquer caso impossível, face à radical hostilidade encontrada e à desigual taxa de crescimento da população judaica e palestiniana, trazendo a prazo a certeza de uma maioria palestiniana dentro desse espaço. Excluída a possibilidade da sua deportação maciça para os países árabes vizinhos, como sucedeu no início da formação do Estado judaico - "solução final" que, porém, continua a ser acarinhada pelos extremistas do Grande Israel -, a opção realista só pode estar numa separação territorial que permita uma separação populacional.
Gaza foi o primeiro território a ser deixado para essa missão de "reserva de palestinianos". Ora, ao contrário do que sucedeu em Gaza, onde a colonização sempre fora reduzida, na Cisjordânia ela não tem cessado de se intensificar sob o Governo de Sharon. São regulares as notícias de ampliação dos colonatos existentes ou do estabelecimento de novos assentamentos israelitas. O mesmo se passa em Jerusalém. Trata-se em geral de colonatos contíguos com o território israelita, quase contínuos entre si, portanto muito mais fáceis de defender e de integrar do que os de Gaza. A construção do muro de separação - cuja edificação avançou, apesar da sua patente ilegalidade, como foi reconhecido pelo Tribunal Internacional de Justiça, na Haia - pretendeu dar ares de carácter definitivo a uma nova fronteira rasgada bem dentro dos territórios ocupados, colocando "do lado de Israel" uma parte considerável da Cisjordânia, incluindo seguramente as suas melhores terras.
É bom de ver que, nos projectos israelitas, a política de retirada de Gaza não é em nada contraditória com a intensificação da colonização na Cisjordânia. Pelo contrário, é instrumental. Do que se trata é de trocar objectivos revelados impossíveis - a anexação e colonização integral da Palestina - por um objectivo menos ambicioso, mas, julga Sharon, com melhores possibilidades de ser realizado. Mas é esse plano viável?
Só o seria, se os palestinianos o aceitassem sem resistência como facto consumado. Contudo, estas quatro décadas de ocupação violenta deveriam já ter convencido toda a gente de que tal não é possível. Por maior que seja o poderio militar dos ocupantes, o certo é que nas condições da Palestina, onde à humilhação da ocupação e da opressão se juntam as divisões éticas e religiosas dos dois povos, não faz sentido esperar a rendição e a aceitação do Diktat israelita. Nenhuma potência ocupante tem direito a esperar a aceitação da ocupação, seja na Palestina, no Iraque ou em Timor. A força pode conter ou mesmo eliminar transitoriamente a resistência. Mas basta um pequeno rastilho para que a insurreição retome a sua dinâmica própria.
Por este motivo, são tão irrealistas as exigências israelitas de fim da resistência palestiniana, como a intenção de levar a cabo pela força o projecto de anexação territorial, o qual só pode prometer a continuação indefinida do conflito, até que, como sucedeu agora com Gaza, Telavive se convença de que a paz só pode ser alcançada mediante a troca do reconhecimento do Estado palestiniano, nas fronteiras dos territórios ocupados (incluindo Jerusalém Oriental), com a segurança das fronteiras internacionalmente reconhecidas do próprio Estado de Israel. A frustração do projecto de colonização judaica e de anexação definitiva de todos os territórios ocupados -, eis porventura a grande consequência da manifesta impossibilidade de subjugar a resistência palestiniana ao longo de todos estes anos de política de ocupação e opressão nos territórios ocupados. O problema está em que Israel não admitiu até agora nunca trocar a paz pelo regresso às fronteiras territoriais de 1967. O mais próximo que esteve foi nas frustradas negociações de Camp David, onde, contudo, ficou aquém de ceder na questão da divisão de Jerusalém, questão inegociável para os palestinianos e que ditou (juntamente com a questão dos refugiados) o lamentável fracasso dessa cimeira, realizada sob os auspícios do presidente Clinton.
Enquanto houver em Israel quem pense em anexar definitivamente uma parte da Palestina ocupada, estarão legitimados também os sectores extremistas palestinianos que se recusam a aceitar a própria existência de Israel e não discriminam nos meios para o revelar. A referida troca - que, aliás, é a única solução conforme com o direito internacional e com as resoluções das Nações Unidas sobre a questão - juntamente com um compromisso equitativo na questão dos refugiados - abdicando os palestinianos do direito de regresso, a troco de adequada compensação pelos suas terras e haveres deixados em Israel (não vai pagar o Governo israelita generosíssimas compensações aos colonos forçados a abandonar a faixa de Gaza?) - são as únicas bases realistas em que pode assentar uma solução justa para o problema palestiniano.
Independentemente da retirada de Gaza, é legítimo e devido exigir à Autoridade Palestiniana que combata as acções terroristas e as facções extremistas que as praticam. Mas a renúncia ao terrorismo não pode significar pedir aos palestinos em geral, nem à Autoridade Palestiniana em especial, que abdiquem de todas as formas de luta contra a ocupação israelita. É evidente que, se o fizessem, estariam a aceitar irremediavelmente a anexação em curso. As potências ocupantes e coloniais tendem sempre a generalizar o conceito de terrorismo, para designar todas as acções de luta contra elas (recorde-se o que sucedeu entre nós com a guerra colonial, onde as forças nacionalistas eram geralmente apodadas de "terroristas", sem distinção da natureza das suas acções). Ora, nem tudo na resistência palestiniana é terrorismo, noção que tem a ver necessariamente com o ataque a civis. Não é terrorismo, porém, a desobediência civil, a Intifada das pedras, o ataque, mesmo armado, a objectivos militares ou das forças de segurança, ou a estabelecimentos, equipamentos e infra-estruturas do ocupante, etc. Tal como Israel recorre à violência para tentar consumar a sua anexação dos territórios ocupados, é mais do que legítimo ripostar com idênticos meios para repelir a ocupação. Estender o conceito de terrorismo a todas as formas de resistência é uma operação intelectualmente pouco honesta e politicamente inconsequente.
Parece evidente, em qualquer caso, que a intensificação da colonização israelita constitui no actual contexto uma qualificada e arrogante "provocação", que não pode esperar a passividade do lado palestiniano. Por isso, para além de Gaza resta todo o conflito para resolver, sem fim à vista.
(Público, Terça-feira, 30 de Agosto de 2005)

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