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15 de setembro de 2005

O poder local como problema 

por Vital Moreira

É inegável que o conceito público do poder local se modificou consideravelmente ao longo da sua evolução desde o 25 de Abril. Se, no princípio, era unanimemente considerado como uma das conquistas exemplares do novo regime democrático, são hoje muitas as vozes que sublinham as suas deficiências e que reclamam a sua profunda reforma. Nas vésperas de eleições locais, importa analisar os motivos para esta mudança.
São conhecidas as razões que fizeram do poder local uma história de sucesso. Em primeiro lugar, a proximidade em relação aos cidadãos fez dele a mais óbvia expressão da democracia, tanto mais que o sistema de governo local incluiu a escolha directa dos presidentes dos órgãos executivos (juntas de freguesia e câmaras municipais) e não somente das assembleias representativas. Em segundo lugar, as funções alargadas e os novos meios financeiros conferidos aos municípios permitiram que eles se tornassem os protagonistas mais visíveis do progresso económico e social do país, nomeadamente no que se refere aos serviços públicos essenciais (água, saneamento, transportes colectivos, etc.) e a infra-estruturas básicas (estradas, equipamentos sociais, piscinas, complexos culturais e desportivos, etc.). Enquanto o Governo e a administração central foram passando por ciclos económicos e financeiros desfavoráveis, o poder local, mercê de um regime financeiro propício, conseguiu manter uma capacidade regular de investimento e de crescimento de despesa pública, que o resguardou da erosão política do Governo central.
Contudo, com o tempo foram-se manifestando alguns traços menos favoráveis do poder local. Entre eles avultam a falta de renovação política em muitas autarquias, havendo presidentes de câmara municipal que se mantêm no cargo desde as primeiras eleições em 1976; o urbanismo caótico e a desorganização urbana em muitas zonas do país; a preferência pela obra física visível, secundarizando a menos visível (como o saneamento básico e o ambiente); as "ligações perigosas" entre o poder local, o sector imobiliário e o futebol; a ocorrência de algumas graves situações de caciquismo populista, de corrupção e de financiamento irregular de partidos políticos; a acumulação de prerrogativas e de privilégios dos autarcas (por exemplo, regime de pensões e de acumulações); o empolamento dos quadros de pessoal; as frequentes acusações de favoritismo político-partidário, ou mesmo de gritante nepotismo, no recrutamento de pessoal e na contratação de bens e serviços.
Na verdade, existe hoje um relativo consenso sobre os principais problemas do poder local. A lista é longa, mas entre eles contam-se seguramente os seguintes: défice de renovação política no mundo autárquico, de que os "dinossauros" são a face mais visível; incongruência crescente do sistema de governo, entre o modelo de órgãos colegiais previstos na Constituição e o crescente presidencialismo do poder local; a excessiva dependência de recursos financeiros do Orçamento do Estado, conjugada com um défice de responsabilidade financeira das autarquias e a demasiada importância do sector imobiliário como fonte de receitas municipais; a ineficiência dos mecanismos de controlo endógeno e exógeno do poder local, dada a ineficácia das assembleias locais, a falta de meios de escrutínio popular externo e a impotência dos meios de tutela estadual; a relativa opacidade e falta de critérios da administração municipal em várias áreas, designadamente no recrutamento de pessoal, nos contratos de aquisição de bens e serviços, nos licenciamentos, no apoio a particulares e a iniciativas privadas; a referida promiscuidade com os interesses imobiliários; a proliferação de entidades de administração indirecta, como empresas municipais e fundações municipais, que tornam a gestão municipal mais imune ao escrutínio público.
Não admira, por tudo isto, que a reforma do poder local esteja na agenda política pública desde há vários anos, especialmente centrada sobre os temas mais visíveis, como a limitação do número de mandatos, a reforma do sistema de governo e a revisão das finanças locais. Mas, bem vistas as coisas, tudo ou quase tudo no regime do poder local carece de revisão mais ou menos profunda, desde o regime de criação e extinção de autarquias até à tutela governamental, desde os serviços municipais até ao regime das empresas públicas municipais.
A actual maioria parlamentar já tomou algumas medidas que não podem deixar de ser aplaudidas, como a limitação dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos locais - que não poderão ultrapassar três mandatos consecutivos - e o fim de alguns privilégios em matéria de regime de pensões e de acumulações dos autarcas. São duas mudanças emblemáticas, que eliminam dois dos principais fundamentos para a má imagem do poder local, acima referidos. Foi também anunciada, e importa retomar, a ideia de extinção de freguesias e municípios que deixaram de ter substrato mínimo, por efeito de alterações demográficas.
Os próximos passos devem incluir a reforma da lei das finanças locais e do regime de governo local. Quanto à primeira, existe grande convergência de opiniões sobre as linhas de reforma: reforço dos meios financeiros próprios dos municípios e diminuição das transferências do Orçamento do Estado; redução do peso dos impostos e taxas derivados do sector imobiliário, tornando os municípios menos dependentes dele; maior visibilidade pública dos impostos e das taxas de serviços municipais, de modo a aumentar a responsabilidade política dos governantes locais em relação às finanças locais. Definitivamente, as eleições locais devem passar a versar não somente sobre as despesas públicas a realizar, mas também sobre o modo de obter os recursos necessários para as financiar.
Por sua vez, a questão do sistema de governo local está na agenda da reforma política pelo menos desde a revisão constitucional de 1997, que desconstitucionalizou em grande parte essa matéria, deixando para a lei o seu desenho concreto, lei que carece de uma maioria de 2/3, exigindo portanto um compromisso entre o PS e o PSD. As posições dos dois principais partidos convergem no sentido de haver uma só eleição para escolha simultânea do presidente da câmara municipal e da assembleia municipal, assegurando ao partido vencedor pelo menos uma maioria absoluta no executivo municipal (PSD) ou mesmo a totalidade da sua composição (PS). Pessoalmente, tenho combatido a primeira das ideias referidas, por entender que, se se quer enveredar por um genuíno presidencialismo local, então isso tem de passar por eleições separadas da assembleia e do presidente da câmara. Nas versões dos dois partidos existe um evidente risco de criação de uma espécie de despotismo do presidente do executivo municipal, que só pode "legalizar" e agravar a situação presente.
Seja como for, quase trinta anos depois da instauração do poder local democrático entre nós, é tempo de tirar as lições da experiência, proceder às mudanças que se impõem, vencer as resistências instaladas, estabilizar e consolidar o quadro jurídico do poder local. Tradicionalmente, o poder local entre nós era regulado por um instrumento normativo abrangente, o "código administrativo". Com o 25 de Abril, o Código Administrativo de 1940, que regulou a administração local até ao fim do Estado Novo, foi rapidamente substituído, quase integralmente, por um crescente número de leis avulsas (eleições locais, atribuições e competências, finanças locais, tutela do poder local, estatuto dos eleitos locais, empresas municipais, etc., etc.). É tempo de pensar em congregar de novo o corpo normativo regulador do poder local num único instrumento legislativo. Com o largo horizonte temporal deste Governo, até 2009, não seria despropositado pensar em lançar ombros, finalmente, à tarefa de elaboração de um novo código de poder local.
(Público, Terça-feira, 13 de Setembro de 2005)

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