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5 de julho de 2005

Consciência Adentro 

De que se faz um filme?
Argumento ? a base de tudo, elenco e realização. Isto é, sem dúvida, o mais importante. Por alguma razão não conhecemos, nem queremos conhecer, os nomes dos vencedores das categorias técnicas. Alguém sabe dizer três nomes que sejam de directores de fotografia? Ou de editores de som? Claro que não. Não perdemos tempo com isso.
Portanto, em resumo, um bom filme ? para o ser ? tem de contar uma boa história, por intermédio de excelentes actores, devidamente filmada/filmados por um realizador, no mínimo, competente. ?Mar Adentro?, de Alejandro Amenábar, tem tudo isso e em doses do mais alto quilate.
Porquê esta introdução com um tom, digamos, algo ressabiado? Por manifesta irritação para com os críticos da nossa praça e as suas malfadadas estrelinhas. Aproveitando o privilégio de ter 5000 caracteres para escrever sobre ?Mar Adentro? ? mando já a minha posta de pescada, obviamente subjectiva e irrelevante: o filme de Amenábar é o melhor do ano.
Desconstruindo as críticas:
1) Dizem que o filme se sustenta apenas num actor. Primeira questão, e depois? Isso alguma vez foi motivo para se desvalorizar a qualidade de uma película? O que são ?Cyrano de Bergerac?, ?Spartacus?, ?Nixon?, o ?Hamlet? de Lawrence Olivier, ?O Meu Pé Esquerdo?, etc, etc, etc, se não filmes sustentados por uma única personagem, logo, por um único actor? Mais ainda, no caso de ?Mar Adentro?, Amenábar rodeou o genial Javier Bardem, no papel verídico de Ramon SanPedro, de um elenco absolutamente notável. Um casting perfeito para actores perfeitos ? e desafio qualquer um a provar o contrário;
2) Dizem algumas críticas que se trata de um filme de tese e que, para provar a sua tese, Amenábar dividiu os defensores e os detractores da eutanásia em ?bonitos? e ?feios? ? para pôr as coisas em linguagem o mais coloquial possível. Bom, a menos que me queriam convencer de que Bardem, envelhecido 30 anos, careca e gordo, é um homem bonito, eu vou ali e já venho (apesar de isso me fazer redobrar as esperanças numa velhice bem mais agradável do que suporia à partida);
3) Dizem ainda alguns que, na defesa da sua tese, Amenábar foi sectário e panfletário. Ponto um, a tese é evidente. Sim senhor, pois e então? Não têm os realizadores direito a contar as histórias que pretendem da forma que entendem? O que seria das carreiras de Oliver Stone, Spike Lee ou Lars Von Trier se tal fosse um dogma restrito e capaz de, por si só, abalar totalmente a qualidade de uma película? Claro ? qualidade é uma coisa, credibilidade é outra. Posso naturalmente achar que ?JFK? é um grande filme mas considerar irreal a perspectiva de Stone. Sem dúvida. Mas quantas vezes ao longo de Mar Adentro a personagem de Ramon SanPedro não surge a insistir com veemência para não fazerem dele símbolo do que quer que seja? Ramon não pretende ser exemplo nem fazer ideologia. Ele diz, diversas vezes, pergunta: quem sou eu para dizer o que é melhor para os outros tetraplégicos? Eu sei o que é melhor para mim.
4) Dizem alguns que Amenábar dourou a pílula. Sim, sem dúvida. Parece ter incluído uma ou duas histórias de amor. Perversa ironia: o amor, ao contrário do mito defendido ad aeternum no cinema comercial, não ?conquista tudo?. O amor é impotente face à decisão de Ramon. O amor é, quanto muito, um instrumento de libertação: ?Se me amas, ajuda-me a morrer?.

?Mar Adentro? é uma tese em película, não restam dúvidas. Uma tese sobre um homem que ?aprendeu a chorar, rindo?. Uma tese sobre o livre-arbítrio, o direito inalienável sobre o nosso próprio corpo. A vitória da dignidade individual sobre os interesses que a sociedade nos impõe, seja por influência moral, ideológica ou religiosa.
Digo, com a maior sinceridade possível, é um filme imprescindível. Comove na medida certa em que nos faz rir, sempre hábil e terno na fina linha que une a tragédia à comédia. É interpretado de forma soberba por actores que se apaixonaram pela história de um homem extraordinário ? que Amenábar filma com o talento de quem conhece de cor as imagens que existem nos espaços em branco entre os versos das ?Cartas do Inferno?. E só não é perfeito porque o realizador, reconheço, cedeu à demagogia num dos últimos planos. Não mostrou todo o sofrimento de SanPedro quando, enfim, bebeu o cianeto. Conheço as imagens reais e são bem mais chocantes. Aqui, a pílula não devia ter sido dourada. Talvez se exigisse mais documentário e menos cinema. Mas, afinal, foi isso que Mel Gibson fez na ?Paixão de Cristo? e atacaram-no à mesma.
Certo de que, no mundo dos críticos, os artistas são presos por ter cão e presos por não ter, creio que talvez não devesse escrever sobre este filme. Marcou-me demasiado e isso é perceptível. Mas como não pretendo ser crítico de cinema (que me dêem cianeto imediatamente se isso algum dia acontecer), e como os caracteres terminam, chego ao fim considerando que o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro é triste consolo para esta obra notável. Para mim, é um dos injustiçados do ano, como ?Before Sunset?, ?Eternal Sunshine of the Spotless Mind? e ?The Door on the Floor?. Por estas e por outras, nunca mais perco uma noite inteira para ver essa coisinha miserável chamada ?Óscares da Academia?. Já agora, se virem o Chris Rock, dêem-lhe uma cabeçada por mim.

Luís Filipe Borges, in A Capital

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