<$BlogRSDUrl$>

28 de abril de 2005

Constituição europeia e religião 

Por Vital Moreira

Entre os argumentos produzidos em França contra o tratado constitucional europeu está o de alguns círculos laicistas, que denunciam nele uma ameaça para o princípio laico da Constituição francesa. Como essa questão tem, ou vai ter, alguma repercussão em Portugal, embora provavelmente com menos visibilidade, importa analisar a questão.
Como se sabe, um dos grandes pontos contenciosos da "convenção europeia" que elaborou o projecto de Constituição e da conferência intergovernamental que a aprovou, teve a ver com uma proposta de inserir no preâmbulo da Constituição uma referência à "herança cristã" da União europeia. Essa proposta foi fortemente patrocinada pelos governos de direita de alguns países de tradição católica (nomeadamente a Polónia, a Itália, a Espanha, Portugal, entre outros), incluindo uma insistente pressão do Vaticano e do próprio Papa. À frente dos opositores intransigentes dessa referência esteve desde sempre a França, a quem se deve o seu afastamento. Essa ausência constitui um dos argumentos invocados pelos círculos nacionalistas tradicionais contra a Constituição. Ironia maior é, porém, o facto de ser justamente em França que o argumento religioso é mais utilizado contra o tratado constitucional, mas por forças e razões assaz diversas, ou seja, pelas correntes laicistas, a pretexto de que há nele demasiada religião.
De facto, a religião aparece algumas vezes no tratado constitucional, mas com sentido e alcance diversos. A primeira referência surge logo no Preâmbulo, onde é invocado o «património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito». É bom de ver que a invocação dessa "herança religiosa" da Europa (a tradução portuguesa usa "património" em vez de "herança") não privilegia nenhuma religião ou corrente, como sucederia com a pretendida referência à "herança cristã", abarcando tanto as religiões cristãs, nas suas diversas vertentes, como o judaísmo ou o Islão, este com uma presença crescente na Europa. É certo que dar conta da herança religiosa europeia limita-se a constatar o óbvio, mas a sua associação com os direitos humanos, a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito é mais do que controversa, tanto no caso da tradição católica, durante muitos séculos hostil a todos esses valores, como no caso do Islão ainda hoje (isto para não falar das perseguições e guerras religiosas que a Europa conheceu durante séculos). Trata-se portanto de uma afirmação retórica sem fundamento histórico, que mesmo num preâmbulo, desprovido de força jurídica, bem poderia ter sido evitada. Mas não é seguramente por aí que a laicidade da UE sai vulnerada.
Analisando agora os preceitos da Constituição, um dos mais atacados pelo laicismo radical francês é o art. 52º, relativo ao «estatuto das igrejas e das organizações não confessionais» Esse preceito estabelece dois princípios: (i) a não interferência da UE no estatuto de que gozam no direito interno dos Estados-membros tanto as igrejas e comunidades religiosas como as organizações filosóficas e não confessionais; (ii) o estabelecimento pela União de um «diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações». Na opinião dos críticos, este preceito valida as situações nacionais em que não existe separação entre a igreja e o Estado, reconhece expressamente as igrejas como interlocutores oficiais das instituições europeias e obriga estas a dialogar com elas, abrindo assim a via para a sua interferência nas políticas da UE.
Considero infundada esta crítica. É evidente que a UE tinha de respeitar as diferenças e idiossincrasias nacionais nas relações dos Estados-membros com as igrejas, desde a estrita separação francesa até ao quase confessionalismo oficial da Grécia, da Irlanda, da Polónia ou da Grã-Bretanha. O que o preceito diz é que essa matéria constitui um assunto nacional --, o que só pode ser motivo de aplauso, e não de crítica. A UE como tal mantém-se incompetente e indiferente sob o ponto de vista religioso. Também não me parece objectável o previsto "diálogo aberto, transparente e regular" com todas as igrejas, num quadro de consulta com todas as forças sociais, que é aliás condição da democracia participativa, que a Constituição Europeia visa promover, tal como sucede aliás com a nossa Constituição (que até reconhece expressamente um direito de antena das confissões religiosas na televisão e na rádio pública).
De resto, o reconhecimento e o diálogo não estão previstos somente para as igrejas e comunidades religiosas, mas também, em pé de igualdade, para as "organizações filosóficas e não confessionais" ? onde se podem contar por exemplo as organizações maçónicas, laicistas, etc. ?, ponto este que os adversários da Constituição Europeia convenientemente esquecem. Ora, se é verdade que Durão Barroso não precisa de nenhuma Constituição para ouvir o Vaticano ou as grandes igrejas protestantes, é de duvidar que se disponha a dialogar com as tais ?organizações filosóficas e não confessionais? se a tal não estiver constitucionalmente obrigado. Por isso a oposição laicista a este artigo do tratado constitucional afigura-se-me um verdadeiro "tiro no pé".
Outro ponto muito atacado pelo laicismo francês é o preceito da Carta de Direitos Fundamentais que garante a liberdade de religião, incluindo a «liberdade de manifestar a sua religião, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, das práticas e da celebração de ritos». No entender dos opositores do tratado constitucional, esse preceito poderia ameaçar a proibição legal francesa de uso de símbolos e vestuário de identificação religiosa (por exemplo, o lenço-de-cabeça islâmico) nas escolas públicas francesas.
Este argumento também não tem nenhum fundamento. Primeiro, o referido preceito limita-se a reproduzir um artigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, que a França há muito subscreveu; segundo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já considerou conforme à Convenção a proibição do uso de vestuário com significado religioso em escolas públicas; terceiro, a própria Carta de Direitos Fundamentais da UE declara expressamente que os seus preceitos, quando correspondem aos da Convenção Europeia, têm o mesmo sentido que têm nesta, tal como interpretada pelo Tribunal de Estrasburgo, o que inclui obviamente as suas restrições admissíveis; quarto, a Carta de Direitos Fundamentais da UE só vale para as relações entre os cidadãos europeus e as instituições da União e não para as situações domésticas dos Estados-membros (salvo quando estes implementam direito da União no âmbito de atribuições desta, o que não é o caso); quinto, o Conselho Constitucional francês, ao analisar a conformidade da Constituição Europeia com a Constituição Francesa, ocupou-se directamente desta questão, tendo concluído sem dificuldade que não existe nenhum perigo para o laicismo constitucional francês.
No caso português há um argumento adicional para que este argumento não faça nenhum sentido. É que em Portugal não existe nada de parecido com a recente proibição francesa do lenço-de-cabeça islâmico nas escolas públicas; nem poderia aliás existir, pelo menos nesses termos, visto que muito provavelmente tal proibição haveria de ser considerada incompatível com a CRP, mesmo que não seja considerada contrária à Convenção Europeia de 1950 ou à Carta de Direitos Fundamentais da UE. De facto, não vejo em que é que o princípio laico exige uma tal restrição à liberdade religiosa das pessoas.
Há um célebre dito anarquista espanhol (ou mexicano?) que reza assim: «Hay gobierno? Entonces, soy contra!» Alguns laicistas imitam agora este dito deste modo: «A Constituição fala em igrejas e em religião? Então sou contra». Infelizmente, o fundamentalismo não é monopólio das religiões. Mas nunca é bom conselheiro.

(Público, 3ª feira, 12 de Abril de 2005)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?