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29 de março de 2005

Referendos 

Por Vital Moreira

Com dois referendos na agenda política próxima - o da Constituição europeia e o da despenalização do aborto -, continuam em aberto alguns problemas constitucionais, cuja solução, por meio de revisão constitucional, não é isenta de controvérsia, até porque eles recolocam em causa algumas das traves-mestras do regime do referendo. São essencialmente duas as questões a resolver: (i) possibilidade de referendos incidentes sobre um tratado globalmente considerado, e não somente sobre soluções concretas nele contidas, como exige o actual texto constitucional; (ii) possibilidade de realização simultânea de referendos com eleições, que o texto vigente da Constituição exclui.
Depois da decisão do Tribunal Constitucional sobre o referendo da Constituição europeia, que reprovou a pergunta proposta pela Assembleia da República (AR), por falta de clareza, tornou-se quase consensual a necessidade de uma pergunta directa sobre o conjunto do tratado constitucional, do tipo: "Está de acordo com o tratado que aprova uma Constituição para a Europa?" Mas a necessária revisão constitucional para viabilizar tal pergunta levanta pelos menos três problemas. Primeiro, dever-se-á substituir a norma constitucional por outra, permitindo doravante referendos com tal objecto, ou dever-se-á antes estabelecer uma solução excepcional para o caso do tratado constitucional europeu, conservando a norma tal como está para o futuro? Segundo, no caso de se optar pela primeira alternativa (substituição da actual norma constitucional), essa solução deverá ser reservada para os tratados internacionais ou deverá aplicar-se também às leis, permitindo igualmente referendos directos sobre projectos de lei globalmente considerados (por exemplo, sobre o projecto de Código da Estrada)? Terceiro, havendo referendo directo sobre projectos de tratado ou de lei globalmente considerados, continuará a fazer sentido manter o actual regime constitucional do referendo, que exige uma ulterior votação parlamentar para implementar o referendo que tenha aprovado a lei ou tratado?
Como se vê, a questão da pergunta do referendo sobre o tratado constitucional, aparentemente inocente, pode obrigar a repensar a própria filosofia constitucional do referendo. Tal como estão previstos na lei fundamental, os referendos não são em si mesmos um meio auto-suficiente de aprovar leis ou tratados, pois a aprovação destes depende sempre de subsequente decisão parlamentar (ou governamental, conforme os casos), que "execute" a decisão popular. Por isso, os referendos não incidem directamente sobre projectos de lei ou de tratado em globo pendentes de aprovação parlamentar ou governamental, mas sim sobre certas soluções neles contidas, ou susceptíveis de serem inseridas em lei ou tratado a aprovar pela AR ou pelo Governo. Deve esta filosofia ser modificada?
A questão da realização concomitante de referendos com eleições surgiu por causa da dificuldade em inserir as duas referidas consultas populares na sucessão de votações iniciada pelas recentes eleições parlamentares, a que se seguirão as eleições locais de Outubro próximo e as eleições presidenciais de Janeiro do ano que vem. Mesmo que fosse possível "encabidar" o referendo da despenalização do aborto no corrente ano, até ao Verão, já o referendo da Constituição europeia - que carece de uma revisão constitucional prévia, como se viu, o que inviabiliza a sua realização a curto prazo - teria de ficar para o próximo ano, só podendo ser desencadeado depois das eleições presidenciais, ou mesmo somente depois da tomada de posse do novo Presidente da República, pois é dele a competência para a convocação dos referendos.
Surgida a proposta de realização do referendo da Constituição europeia em simultâneo com as eleições locais de Outubro próximo, ideia que o primeiro-ministro já perfilhou, isso requer mais uma vez uma alteração constitucional, que poderia ser realizada conjuntamente com a outra acima referida, numa única revisão constitucional extraordinária. Contudo, para além da própria controvérsia sobre a revogação ou derrogação da proibição da concomitância de referendos com eleições, esta questão levanta mais dois problemas. Primeiro, deverá alterar-se a actual regra constitucional, ou simplesmente estabelecer-se uma excepção ad hoc para o referendo da constituição europeia, mantendo aquela em vigor? No caso de se optar pela primeira alternativa (alteração da regra), dever-se-á pura e simplesmente abandonar a proibição da simultaneidade de referendos e eleições ou dever-se-á preservar a proibição de concomitância de certos referendos com certas eleições?
De facto, pode entender-se que a actual proibição constitucional é excessivamente exigente, sendo por isso injustificável na sua amplitude, pelo que deve ser alterada, sem mencionar uma vantagem colateral da simultaneidade, que é a de assegurar uma maior participação nos referendos, onde a taxa de abstenção é consideravelmente superior à das eleições. Mas o excesso da actual proibição absoluta não prejudica completamente a filosofia subjacente, segundo a qual importa prevenir a utilização plebiscitária dos referendos ou a "contaminação" das eleições pelas consultas referendárias. O máximo até onde se deve ir é consentir na simultaneidade de eleições e de referendos de âmbito territorial não coincidente. Assim, seria de consentir por exemplo a realização de referendos sobre temática europeia (ou internacional) com eleições locais ou regionais, ou vice-versa, mas não a concomitância de eleições e de referendos com o mesmo âmbito territorial, dada a mais que provável imbricação das questões políticas das primeiras com os dos segundos. Por isso é de considerar inteiramente acertada a objecção levantada contra a proposta outrora feita por Durão Barroso, então primeiro-ministro, da realização do referendo sobre a Constituição europeia concomitantemente com as eleições europeias do ano passado, sendo evidente que as questões políticas em causa se sobrepunham e que as clivagens partidárias eram assimétricas nas duas votações, podendo por isso condicionar ou confundir os eleitores.
Se existe uma eleição que não deve consentir a realização de referendos concomitantes, qualquer que seja o seu âmbito, é a eleição presidencial. Dada a sua natureza pessoal, é essa eleição a mais susceptível de aproveitamentos plebiscitários ou oportunistas; a utilização por parte de George Bush dos referendos promovidos pelos círculos mais tradicionalistas por ocasião das eleições presidenciais norte-americanas do ano passado mostra o efeito nefasto que a acumulação pode ter. Aqui todo o cuidado é pouco. Por isso considero inaceitável a proposta lançada por alguns dirigentes do PSD para realizar o referendo da Constituição europeia em simultâneo com as eleições presidenciais do ano que vem. Nem esse referendo nem qualquer outro.
Há uma questão suplementar que tem sido levantada sobre os dois referendos em causa, que é a da possibilidade da sua própria realização simultânea. Houve mesmo quem reclamasse uma alteração constitucional para permitir essa solução. Ora, não existe nenhuma proibição constitucional ou legal, nem expressa nem implícita, de referendos concomitantes. Existe, sim, uma limitação ao número de perguntas em cada referendo, o que é manifestamente diferente. A questão foi obviamente deixada à discrição da AR e do Governo, a quem cabe propor a realização dos referendos, e do Presidente da República, a quem compete a sua convocação. Saber se deve haver, ou não, dois referendos simultâneos é uma questão de oportunidade ou conveniência política, não de constitucionalidade ou de legalidade. Não se confundam alhos com bugalhos. Nem se inventem mais problemas constitucionais a propósito do referendo do que aqueles que realmente existem.

(Público, 3ª feira, 29 de Março de 2005)

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