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15 de março de 2005

Monopólio profissional das farmácias e farmácias sociais 

Por Vital Moreira

Entre nós o estabelecimento de farmácias continua regulado no essencial por legislação do tempo do Estado Novo (1965), que por um lado reserva a propriedade e gestão de farmácias para os licenciados em Farmácia (exclusivo profissional) e que, por outro lado, condiciona administrativamente a criação de novas farmácias em função de um mínimo de população e de um mínimo de distância em relação a farmácias já estabelecidas.
O exclusivo profissional - que não tem paralelo em nenhuma outra actividade - significa uma óbvia limitação da liberdade de iniciativa económica, de natureza retintamente corporativa. Além de vedar o acesso a não farmacêuticos, ele interdita implicitamente a titularidade de farmácias, quer pelo sector público (por exemplo, uma câmara municipal) quer pelo sector social e cooperativo. As poucas "farmácias sociais" existentes, pertencentes a misericórdias e outras instituições de solidariedade, são em geral anteriores à lei de reserva da propriedade aos farmacêuticos, há quatro décadas.
Por sua vez, o condicionamento ao estabelecimento de novas farmácias traduz-se efectivamente numa contingentação do número de farmácias e na criação de verdadeiros monopólios territoriais. Visando alegadamente assegurar a "viabilidade da exploração económica" das farmácias - o que numa economia de mercado não pode constituir uma questão de interesse público -, o que se faz é vedar a concorrência e proteger os interesses particulares das farmácias estabelecidas.
Esta dupla restrição ao estabelecimento de farmácias era certamente congruente com o Estado Novo, onde a liberdade de estabelecimento cedia aos privilégios corporativos e onde a concorrência era sacrificada pelo "condicionamento industrial", pela reserva de mercado e pela cartelização administrativa da economia. Mas está obviamente desfasada com os princípios da liberdade de estabelecimento e da concorrência, próprios de uma genuína economia de mercado, sobretudo no contexto da criação de um "mercado único", sem fronteiras nacionais ou territoriais, no âmbito da União Europeia.
O duplo "malthusianismo" farmacêutico, cerceando o aumento da oferta e a concorrência, garante obviamente uma confortável "renda de monopólio", que explica os preços astronómicos que atinge o trespasse de farmácias. Além disso, limitando-se o número de farmácias, restringe-se também o emprego de farmacêuticos como directores técnicos. Quem paga esta situação são, por um lado, os consumidores, com limitada capacidade de escolha, pior serviço, preços mais altos, menos farmácias de serviço permanente, e por outro lado, os jovens farmacêuticos, como menos estabelecimentos a necessitar deles. Quanto menos farmácias existirem menos farmacêuticos têm emprego.
Justifica-se que as farmácias tenham obrigatoriamente um director técnico profissional, como sucede noutros tipos de estabelecimentos, desde logo na área da saúde (por exemplo, laboratórios farmacêuticos, laboratórios de análises clínicas, hospitais privados, etc.). Mas isso não justifica de modo algum o exclusivo farmacêutico da propriedade do estabelecimento, que não integra núcleo de reserva profissional dos farmacêuticos. Descontadas as necessárias incompatibilidades, por motivo de conflito de interesses (por exemplo em relação a médicos e a empresas produtoras de medicamentos), o estabelecimento de farmácias deveria estar aberto a qualquer pessoa ou entidade financeiramente idónea.
Também se justifica que a criação e a gestão de farmácias seja submetida ao preenchimento de certos requisitos, tanto para assegurar instalações condignas, stocks permanentes de medicamentos, etc., como para garantir determinadas "obrigações de serviço público", como a abertura à noite e durante os fins de semana. Mas, fora isso, nada justifica a limitação da liberdade de estabelecimento, a qual proporcionaria aumento da oferta, farmácias mais perto dos clientes e salutar concorrência na angariação dos mesmos, seja através da competição nos preços (lá onde ela é possível), seja pela atractibilidade dos estabelecimentos, seja pelos serviços facultados (fornecimento domiciliário, etc.).
O que é estranho é como esta insólita situação tem permanecido até agora, resistindo mesmo aos novos ventos da liberalização económica e da hostilidade aos monopólios e mercados protegidos. O duplo monopólio das farmácias tem resistido, sem que nenhum Governo tenha até agora tentado sequer beliscar o poderoso grupo de interesses que beneficia da situação. Os raros projectos de mudança desta situação naufragaram sempre face às poderosas forças que tiram proveito do ?status quo?. A destemperada reacção da ANF, verdadeiro cartel do sector, contra a modesta proposta de abertura de novas farmácias sociais feita pelo PS na campanha eleitoral de 2002 mostra a enorme importância do que está em jogo.
Nessa altura houve quem, em postura crítica, perguntasse: porquê as farmácias sociais? A resposta é elementarmente simples: porque não existe nenhuma razão para vedar o acesso das instituições da "economia social" à actividade farmacêutica. Trata-se por definição de entidades sem fins lucrativos, constituído entre nós principalmente pelas misericórdias e outras instituições particulares de solidariedade (IPSS), que têm um peso relevante na prestação de cuidados de saúde e de apoio social (deficientes, terceira idade, etc.).
Mas essa pergunta só serve para esconder outras perguntas pertinentes, a saber: o que é justifica o actual regime de reserva de propriedade e de restrição de criação de farmácias? Por que não fomentar a diversidade e a concorrência no sector? Por que é que as misericórdias podem ter hospitais e não podem ter farmácias? Por que é que pode haver mutualidades de crédito e de seguros, por exemplo, e não podem existir estabelecimentos de farmácia mutualistas? Por que é que os sindicatos e outras organizações sociais podem ter serviços médico-sociais e não podem ministrar medicamentos aos seus associados?
De facto, no regime de monopólio profissional das farmácias é especialmente chocante a exclusão de farmácias sociais. Primeiro, porque as farmácias são uma actividade com uma ligação privilegiada à grande intervenção do sector social no campo da saúde; segundo, porque as farmácias sociais constituem um traço importante da paisagem farmacêutica em muitos países europeus; terceiro, porque, entre nós existe uma específica protecção constitucional do "terceiro sector", que não é compatível com a vedação da exploração de farmácias (a Constituição permite a existência de actividades vedadas ao sector privado, mas não ao sector social). O modelo económico da Constituição é verdadeiramente uma "economia social de mercado", incluindo uma "garantia institucional" do "terceiro sector". A exclusão de farmácias sociais não é conforme à "constituição económica" da CRP.
A belicosa reacção do cartel das farmácias contra a proposta de criação de farmácias sociais veio mostrar duas coisas. Primeiro, que ao abrir uma brecha no actual princípio legal do monopólio corporativo das farmácias tal proposta não era tão inócua e irrelevante como se poderia julgar. Segundo, que alguns grupos de pressão, habituados a um "Estado mole", tomaram o freio nos destes e não toleram a mais pequena beliscadura no seus rendosos impérios privativos. Acima de tudo, esse episódio veio confirmar em toda a linha a convicção generalizada de que um dos cancros da nossa vida política consiste na "captura" do Estado pelos interesses organizados, que se arrogam um verdadeiro direito de veto e um poder de bloqueio de todas as mudanças políticas que possam ameaçar os seus privilégios, normalmente alimentados à custa dos consumidores, do erário público, ou de ambos (como sucede no caso concreto).
Até quando é que os poderosos interesses estabelecidos continuarão a prevalecer sobre o interesse público? Quando é que a liberalização do sector das farmácias - e, em especial, a criação de farmácias sociais - volta à agenda política nacional?

(publicado na revista Economia Social, Janeiro de 2005)

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