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16 de março de 2005

Manual para levar de vencida os grupos de interesse 

Por Vital Moreira

Para ilustrar a reacção popular à decisão do novo Governo de autorizar a aquisição dos medicamentos de venda livre fora das farmácias, a RTP, como habitualmente nestas ocasiões, procurou colher a opinião de algumas pessoas avulsas no domingo passado. Mais relevante do que as opiniões expressas é a cena em si mesma, que se passa frente a uma farmácia de serviço. A fila de pessoas à espera de atendimento estende-se para o exterior do estabelecimento. Não fora o dia primaveril, e o incómodo daqueles cidadãos seria bastante maior do que a demora em pé, ao ar livre. Provavelmente, diversas daquelas pessoas queriam adquirir medicamentos não sujeitos a receita médica. Se a medida anunciada pelo novo primeiro-ministro já estivesse em vigor, poderiam adquiri-los facilmente no supermercado mais próximo.
Mais importante do que isso, se não existissem tantas restrições ao estabelecimento de novas farmácias, o número destas seria maior, pelo que a tal fila de espera seria provavelmente dispensável. Sendo desde há muito defensor da liberalização da propriedade das farmácias, recordo uma história que testemunhei, na minha breve passagem pela Assembleia da República em 1996-77. Deputados socialistas tinham apresentado dois projectos de lei tendentes ao levantamento total ou parcial das restrições ao estabelecimento de farmácias. Mas estes não chegaram sequer a ser discutidos. Interesses mais altos se levantaram e prevaleceram; os projectos que ficassem na gaveta. Quase dez anos se passaram, mantendo-se o arcaico regime de restrição à criação de farmácias, para único benefício das que estão instaladas e para prejuízo dos utentes e dos interesses do Estado.
Ao contrário de alguns apressados observadores, não considero despiciendo nem deslocado o anúncio da referida reforma pelo primeiro-ministro no discurso de tomada de posse. Não tanto pelo que essa medida significa em si mesma - ainda que ela não seja irrelevante, em termos de maior disponibilidade desses medicamentos, de preços mais baixos e de mais emprego para os jovens farmacêuticos -, mas sobretudo pelo seu significado simbólico quanto à linha de conduta do Governo. Na verdade, é fácil tirar duas ilações decisivas. Primeiro, o novo Governo leva a sério a sua aposta numa economia de mercado eficiente e no valor primordial da concorrência; segundo, o Governo não vai respeitar os interesses instalados ao adoptar as soluções requeridas pelo interesse geral.
Em primeiro lugar, é fácil perceber que esta iniciativa só pode constituir o primeiro passo para a abertura do mercado da venda de medicamentos, incluindo a eliminação das actuais barreiras à criação de farmácias, quer as que respeitam ao monopólio profissional (reserva para os farmacêuticos), quer sobretudo as que respeitam à capitação mínima por concelho e à distância mínima necessária entre as farmácias, nenhuma das quais tem paralelo na nossa ordem económica. Em segundo lugar, foi o próprio primeiro-ministro que expressamente considerou esta iniciativa como uma demonstração da prevalência do interesse geral sobre os "interesses particulares ou corporativos". Certamente há grupos de interesse mais poderosos e mais conservadores do que a ANF e o "lobby" farmacêutico no nosso país, embora não haja muitos outros tão visíveis e tão bem sucedidos na travagem da modernização do respectivo sector e na defesa de um mercado protegido, em prejuízo dos utentes.
É neste registo que se deve ler a aparentemente insólita proclamação do primeiro-ministro. Para além da importância da medida em si mesma, trata-se de uma declaração de política geral e de um "aviso à navegação". Por um lado, a abertura do mercado dos medicamentos à concorrência é somente uma expressão de uma mesma preocupação geral que deve ser aplicada a todos os sectores da economia onde as limitações à concorrência mantêm elevados os preços de bens e serviços, como sucede ainda nas telecomunicações, na electricidade e no gás natural, nos combustíveis ou nos serviços profissionais, etc. Por outro lado, se há uma revolução a fazer em Portugal, ela consiste em fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses sectoriais e corporativos. E são muitos, estes, desde as associações empresariais aos sindicatos, passando pelos grupos profissionais de elite (ordens profissionais em especial), desde a Igreja Católica e a Opus Dei à maçonaria, desde os magistrados aos militares, desde as universidades às câmaras municipais.
Numa democracia liberal, os grupos de interesse são actores essenciais do jogo político, a par dos partidos políticos, competindo-lhes a tarefa de agregação e representação de interesses de grupos da mais variada ordem. Há mesmo teorias que concebem a democracia pluralista essencialmente como um mecanismo de livre formação e competição entre grupos de interesse organizados, de que o Estado deveria ser somente o regulador. Sucede, porém, que não existe igualdade de oportunidades na organização dos interesses de grupo, nem na sua capacidade de influência sobre o poder político. Mais grave do que isso, há duas categorias de interesses (que final são uma só...) que, pelo seu grande número, não têm a mesma capacidade de organização e de expressão que os grupos sectoriais, mais reduzidos e mais coesos. Trata-se dos consumidores e dos contribuintes, ou seja, os cidadãos em geral. Ora, a tarefa do poder político democrático é fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses sectoriais e as suas organizações. O pior que pode suceder é a "captura" do poder político pelos grupos de interesse, que passam a usá-lo em seu benefício, como tantas vezes sucede.
Existem algumas regras elementares para levar de vencida os interesses organizados, que devem ser observadas sobretudo quando eles são especialmente poderosos, como são os que se movem na área da saúde, até pela sua capacidade de mobilizar de forma populista a insegurança e os receios dos cidadãos, pelos seus abundantes recursos financeiros e pelas numerosas tribunas de que dispõem nos meios de comunicação social.
A primeira regra é haver vontade e determinação política para levar a cabo as necessárias reformas; um governo sem indiscutível legitimidade eleitoral e sem forte liderança política dificilmente estará em condições de travar grandes guerras com os grupos de interesse mais influentes.
A segunda regra é a marcação da "agenda" política por parte de quem quer promover reformas que afectem poderosos grupos de interesse; o pior que pode suceder é permitir que estes tenham conhecimento antecipado das medidas projectadas e tenham a iniciativa de as veicular para a opinião pública segundo os seus pontos de vista próprios, colocando o poder político na defensiva.
A terceira regra consiste em explorar as contradições entre diferentes grupos de interesse e, se possível, das que possam existir dentro do próprio grupo de interesse mais afectado. Por exemplo, na área da saúde é possível colher o apoio dos médicos contra os farmacêuticos (e vice-versa), conforme os temas; e neste caso das farmácias os jovens farmacêuticos podem ser os primeiros apoiantes das medidas de abertura do mercado, as quais podem aumentar a procura dos seus serviços profissionais.
A quarta regra - que é a regra de ouro - consiste em trazer a discussão das reformas para a opinião pública, dando lugar central à defesa e protecção dos interesses dos utentes. O pior que pode suceder a um governante em luta contra interesses sectoriais arreigados é confinar a discussão à esfera da negociação bilateral com os respectivos grupos de interesse. O apelo aos utentes em nome do interesse público e dos interesses de cada utente em especial constitui o principal aliado de uma política reformista. Professor universitário

(Público, 15 de Março de 2005)

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