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2 de fevereiro de 2005

Governos de Coligação  

Por Vital Moreira

Perguntado sobre a hipótese de coligação do PS com os partidos à sua esquerda - caso vença as eleições sem maioria absoluta -, o dirigente socialista António Vitorino respondeu secamente que não existem condições para isso. Embora ele não tenha explicitado as razões, elas parecem evidentes. Primeiro, no caso português, as coligações não têm dado boa conta de si; segundo, as coligações à esquerda são à partida de difícil concepção; terceiro, nas circunstâncias actuais elas são um exercício praticamente inviável. Vejamos porquê.

Num sistema eleitoral proporcional como o nosso a situação "normal" é que nenhum partido consiga só por si uma maioria parlamentar absoluta para poder governar sozinho. Por isso, as alternativas são os governos minoritários, por natureza frágeis, ou os governos de coligação. Entre nós, até à actual legislatura (2002), tinha havido vários governos de coligação, todos anteriores a 1985. Mas tirando o caso especial do efémero governo intercalar de 1979-80 (1º governo da AD), nenhum outro cumpriu uma legislatura (longe disso), tendo todos naufragado por desentendimentos ou rupturas da coligação. Quanto à presente legislatura, não temos meios de saber se a coligação poderia chegar ao fim, caso o destrambelhamento governativo de Santana Lopes não tivesse tornado insustentável a sua continuação. Comparativamente, os vários governos minoritários - três do PS e um do PSD (Cavaco Silva, 1985), sendo este aliás o governo mais minoritário de todos, com menos de 30 por cento dos votos - não se revelaram menos duradouros do que os de coligação, tendo até havido um que aguentou uma legislatura inteira (o 1º governo de António Guterres).

Não é por acaso que não se registou nenhum governo de coligação à esquerda. Sempre que o PS ganhou, nunca tendo obtido maioria absoluta, preferiu governar em minoria ou coligar-se à direita, uma vez com o CDS e outra vez com o PSD, sendo de realçar que em ambos os casos se tratava de situações muito difíceis sob o ponto de vista económico e financeiro, configurando-se como verdadeiros governos de crise ou de "salvação nacional", cuja superação exigia uma alargada base social e política de sustentação. A exclusão de coligações à esquerda, divergindo do próximo exemplo francês, deve-se a muitos factores, designadamente a história profundamente conflitual entre o PS e o PCP, em especial no período revolucionário, a intransigente ortodoxia marxista-leninista do PCP e a sua visceral oposição à integração europeia (de que o PS tem sido campeão). Acresce que, enquanto o sistema eleitoral francês, maioritário a duas voltas, fomenta a formação de alianças à esquerda nas próprias eleições (2ª volta), sendo a coligação de governo uma continuação natural da aliança eleitoral, no nosso caso o sistema proporcional torna os dois partidos competidores directos entre si, na faixa de eleitorado que ambos disputam.

Nas circunstâncias actuais as condições para um hipotético governo de coligação à esquerda são ainda menos favoráveis. Em tese, a emergência do BE ao lado do PCP poderia facilitar as coisas, explorando a competição entre eles para participar no poder (suposta uma situação em que bastasse um deles para fazer maioria parlamentar com o PS). Mas as coisas não se apresentam assim, desde logo porque o BE tem afirmado repetidamente a sua indisponibilidade para se comprometer na acção governativa, o que afasta à partida a possibilidade de coligação com ele. Além disso, as razões que até agora têm obstado a um entendimento com o PCP são válidas também para o BE. Ambos se mantêm como "partidos revolucionários", no sentido próprio do termo, preservando uma oposição de fundo em relação ao modelo económico e social que o PS defende, que não questiona a economia de mercado. E ambos são radicalmente contra o curso da integração europeia e em especial contra a nova Constituição da UE, que o PS sufraga sem hesitação. Para ver a dificuldade do exercício de uma coligação à esquerda basta figurar o prometido referendo ao novo tratado constitucional da UE. Pode conceber-se a coabitação pacífica entre apoiantes empenhados e inimigos declarados, numa questão tão decisiva para o futuro do país e da UE?

Para além dessas divergências essenciais, tanto o PCP como o BE defendem políticas que na actual situação das finanças públicas tornariam impossível a necessária consolidação orçamental (a não ser à custa de impraticáveis subidas da carga fiscal), como por exemplo a extinção das propinas no ensino superior ou subidas incomportáveis de pensões e de remunerações no sector público. Ambos se opõem também a reformas que sob o ponto de vista do PS são imprescindíveis para aumentar a eficiência dos serviços públicos, como, por exemplo, no caso da gestão hospitalar e da reforma da administração pública em geral. Uma aliança com esses partidos implicaria provavelmente não somente o sacrifício de algumas das principais orientações do PS, a começar pela disciplina das contas públicas, mas também a adopção de algumas das propostas mais radicais dos parceiros de coligação, implicando em qualquer caso o risco de grave desvirtuamento da sua proposta política e de inconsistência do programa e da acção do governo.

Qualquer governo de coligação supõe obviamente cedências recíprocas entre os participantes. O que se pode seriamente duvidar é se no actual contexto, dadas as enormes diferenças de partida e de atitude, seria possível uma transacção minimamente consistente e estável. Tanto o PCP como o BE têm insistentemente declarado que só estão disponíveis para apoiar políticas "de esquerda" (naturalmente segundo o seu próprio entendimento), o que significa a sua indisponibilidade para compartilhar outras soluções que não as suas. Nesta base de intransigência, como seria possível uma convergência com razoáveis condições de funcionamento harmonioso e duradouro? Por exemplo, é impensável uma coligação sem solidariedade em matéria orçamental e financeira. Mas, dada a manifesta insensibilidade de ambos os referidos partidos em relação à consolidação das finanças públicas e ao cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento, poderão ser promissoras as probabilidades de acordo?

Nestas condições, as perspectivas de um governo minoritário poderiam parecer mais desanuviadas, jogando com uma geometria variável de apoios parlamentares, à esquerda e à direita, de acordo com a natureza das matérias em causa. Mas o exercício de governo sem maioria é bem mais arriscado e imprevisível, não sendo isento de limitações, sobretudo nas questões de natureza orçamental, que são o "calcanhar de Aquiles" dos governos minoritários, especialmente em períodos de restrição financeira. Como mostrou o segundo governo Guterres, em tempos de "vacas magras" ninguém está disponível para apoiar restrições em nome de vantagens futuras.

A "moral da história" parece simples: em caso de vitória do PS sem maioria absoluta, o mais provável é a instabilidade governamental, se não mesmo a ingovernabilidade. Em vez de um forte governo de legislatura, o resultado seria um governo frágil e a prazo incerto, sem vantagem para ninguém e com prejuízo para todos, sobretudo para a esquerda, que desbaratará mais uma oportunidade. O mínimo que se pode dizer é que também não são boas notícias para a saúde do próprio sistema constitucional.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. Com o seu inqualificável ataque pessoal a José Sócrates, com "innuendos" mal-intencionados sobre a sua vida privada, Santana Lopes transpôs um limite normalmente inviolável no combate político de uma democracia civilizada, dando mostras da sua falta de escrúpulos, de pudor e de carácter. Assim ficamos a saber melhor do que ele é capaz!

2. Dilema de muitos apoiantes do PSD perante a derrota certa: votar ainda em Santana Lopes e permitir-lhe continuar a dar cabo do partido, ou deixá-lo sofrer uma pesada derrota para abrir caminho a outra liderança que resgate o partido do desastre para que caminha?

(Público, Terça-feira, 01 de Fevereiro de 2005)

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