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16 de novembro de 2004

A Disciplina das Profissões 

Por Vital Moreira

Justifica-se plenamente o destaque dado aqui no PÚBLICO de domingo passado à publicação das decisões disciplinares pela Ordem dos Advogados. Primeiro, porque se trata de um gesto inédito, pois é quase desconhecida a prática disciplinar das nossas ordens profissionais. Segundo, porque se verifica que a função disciplinar de uma profissão tão importante como a dos advogados está a ser efectivamente exercida, incluindo várias decisões de expulsão da profissão nos casos mais graves. Terceiro, porque, face aos acrescidos riscos para a deontologia profissional na sociedade actual, uma iniciativa desta natureza é uma importante arma contra a desconfiança e o descrédito das profissões.

Não há profissão que se preze que não cultive uma deontologia profissional, que não cuide de vertê-la em códigos de ética e de conduta e que não procure criar instrumentos de garantia dos correspondentes deveres e de censura das respectivas infracções. Por maioria de razão, nas profissões liberais. Por um lado, as suas relações com os clientes baseiam-se numa enorme "assimetria de informação", visto que pressupõem um alto grau de saber especializado e de treino nas "legis artis". Por outro lado, dada essa desigualdade de partida, a relação profissional tem de basear-se sobretudo na confiança dos clientes, que não estão em condições de avaliar a necessidade e a qualidade dos serviços recebidos. É por isso que desde sempre as profissões liberais foram caracterizadas por fortes exigências deontológicas, vinculadas a um conjunto de deveres profissionais (deontologia é o que tem a ver com deveres), em especial em relação aos clientes (mas não só, abrangendo também as relações com os "pares" e com a colectividade em geral).

De resto, como tive oportunidade de sublinhar noutra ocasião, a disciplina profissional reveste uma importância crescente hoje em dia. Por várias razões: massificação das profissões, maior competição pelos clientes num mercado cada vez mais agressivo, perda da vigilância de proximidade e da inibição que o pequeno número de profissionais permitia, maior capacidade de avaliação e de queixa dos consumidores, aumento do controlo da opinião pública, desde logo por causa da maior atenção dos "media".

Teoricamente a disciplina profissional - sobretudo no caso das profissões liberais - é do interesse da própria profissão, de forma a assegurar o seu bom nome e a reputação (com reflexo na procura de serviços e nos respectivos honorários...). Baseando-se a profissão fundamentalmente numa relação de confiança com os clientes, é do interesse colectivo da profissão a punição das correspondentes infracções, incluindo a expulsão, em última instância. Daí a justificação e a preferência por soluções de autodisciplina profissional, em que a apreciação e punição das infracções cabe a órgãos disciplinares saídos da própria profissão, e não ao Estado.

As vantagens de autodisciplina sobre a disciplina estadual para ambos são óbvias: menos custos para o Estado, maior legitimidade da autoridade disciplinar (julgamento pelos pares), mais eficácia na aplicação de sanções, menor litigiosidade nos tribunais. A lógica da autodisciplina está em supor que é do interesse da profissão punir os que prevariquem porque aumenta o crédito público da profissão e a confiança dos clientes nos serviços profissionais. A autodisciplina é o principal activo do capital social da profissão. Uma profissão liberal sem disciplina profissional degrada o seu crédito social e prejudica gravemente o valor dos seus serviços. A autodisciplina profissional assenta, portanto, no interesse próprio. Infelizmente, tal pressuposto nem sempre se verifica, havendo muitas profissões que preferem proteger os infractores e os interesses corporativos imediatos, em vez do bom nome e do prestígio permanentes da profissão.

Esse risco é maior no sistema das ordens profissionais continentais - que misturam as funções de auto-regulação e de autodisciplina com as funções de representação profissional e de defesa dos interesses profissionais "stricto sensu" - do que no sistema anglo-saxónico, em que as funções de regulação e autodisciplina cabem em geral a conselhos profissionais que só exercem essas tarefas, não tendo funções propriamente "corporativas", as quais cabem exclusivamente a sindicatos e associações profissionais privadas. No entanto, a disciplina profissional é uma das principais incumbências das ordens profissionais, sendo essa porventura a principal razão para a sua criação como organismos oficiais de auto-regulação profissional.

Entre nós, dada a falta de uma lei-quadro das ordens profissionais, é muito heterogéneo o regime disciplinar das diversas profissões, quanto à definição dos deveres profissionais, quanto às sanções previstas e quanto à competência para a sua aplicação. No caso dos advogados, o código deontológico consta dos próprios estatutos da Ordem, o que lhe confere maior visibilidade. A revisão estatutária de 2001 trouxe algumas importantes inovações, designadamente a criação de órgãos disciplinares especializados, separados dos órgãos de governo da Ordem e descentralizados a nível regional, o estabelecimento da pena de expulsão (antes só havia a suspensão temporária), a previsão de um procedimento público no caso de infracções susceptíveis de serem punidas com suspensão ou expulsão.

Numa anterior reflexão, há mais de um ano, sobre a disciplina profissional entre nós, tive a oportunidade de lançar algumas propostas concretas que, a meu ver, poderiam melhorar a situação, nomeadamente a seguintes: separação entre órgãos de governo e órgãos disciplinares; independência destes, que deveriam ser presididos preferivelmente por uma personalidade estranha à profissão (por exemplo, um magistrado); instituição de um "provedor do cliente", independente, com capacidade para investigar preliminarmente as infracções profissionais, desde logo mediante queixa dos clientes, e com poderes para desencadear autonomamente o procedimento disciplinar; obrigatoriedade de publicitação das decisões disciplinares; proibição de amnistia política de infracções disciplinares, não repetindo a escandalosa amnistia de há uns anos, que incluiu as infracções mais graves.

É particularmente decepcionante o panorama da função disciplinar na generalidade das ordens profissionais portuguesas. A informação é escassa, mas há fortes indícios de que prevalece em geral a impunidade disciplinar, com o consequente desprestígio das ordens na opinião pública (o que seria o menos) e degradação do crédito público das respectivas profissões (o que é bem mais grave). Entre as excepções está claramente a Ordem dos Advogados, como se sabia de antemão e bem se mostra agora com a publicação da sua jurisprudência disciplinar. Trata-se de um salutar exercício de transparência e de prestação de contas: da Ordem perante a colectividade de advogados, bem como da profissão e da Ordem, perante as demais profissões e ordens e perante a comunidade em geral. Para os profissionais, é uma demonstração da autoridade da Ordem, com evidente efeito preventivo e dissuasor. Para as demais ordens e profissões trata-se de um exemplo de boas práticas e um desafio. Doravante, elas ficam sob pressão para revelarem também o desempenho do seu poder punitivo. Para a comunidade exterior, é uma prestação de contas sobre o exercício das tarefas públicas confiadas às ordens.

Por que não tornar obrigatória para as diversas ordens a publicação periódica das suas decisões disciplinares?
(Público, Terça-feira, 16 de Novembro de 2004)

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