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26 de outubro de 2004

Pior do Mesmo 

Por Vital Moreira

Ao observarmos a disputa presidencial nos Estados Unidos, não podemos deixar de nos perguntar o que seria da campanha eleitoral de Bush se não fosse o terrorismo internacional, a Al-Qaeda e o 11 de Março. Os discursos e as mensagens eleitorais do par Bush-Cheney giram sistematicamente à volta do terrorismo e das questões da segurança dos norte-americanos, que só a sua "guerra ao terror" poderia vencer. A campanha do actual hóspede da Casa Branca não passa de um exercício clássico de recurso a uma ameaça externa, propositadamente hiperbolizada, para criar um clima emocional de insegurança, de intimidação e de terror nos eleitores, de modo a arrastá-los para as soluções mais securitárias.

Para o cidadão comum os Estados Unidos encontram-se em verdadeiro estado de sítio, que justifica não somente a guerra no exterior mas também uma mobilização interna geral, que se não compadece com a suposta relativização da ameaça terrorista pelo candidato democrata e com a sua alegada "macieza" em relação ao Iraque. Se existe um protagonista nestas eleições, mesmo se ausente, ele chama-se Bin Laden, cujo paradeiro continua misteriosamente (ou convenientemente?) a escapar aos imensos recursos da Cia e do Pentágono. Ele é o melhor "aliado" de Bush...

Os que benevolamente esperavam que Bush aprendesse alguma coisa com o desastre do Iraque - que não fez mais do que justificar e fomentar o terrorismo islâmico - e com a condenação internacional do unilateralismo norte-americano bem podem desiludir-se. A sua eventual recondução presidencial significaria também o triunfo dos Cheney, dos Rumsfeld, dos Wolfowitz, dos Perle, ou seja, de toda a equipa "neoconservadora" que concebeu e pôs em marcha - incluindo com o recurso à mentira institucionalizada ou à manipulação sistemática de informações - a estratégia internacional dos Estados Unidos, baseada na acção unilateral, na desconsideração das Nações Unidas e dos países que recusem o seguidismo da liderança norte-americana, na marginalização da Europa, no intervencionismo militar universal, designadamente no mundo árabe, na "democratização" à força do mundo, etc.

Com mais quatro anos de Bush e do seu séquito na Casa Branca os Estados Unidos continuariam militantemente hostis a um numeroso conjunto de convenções internacionais de valor essencial para o mundo de hoje, designadamente o Protocolo de Quioto sobre a limitação das emissões de gases com efeitos de estufa e o Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional, para a punição dos mais graves crimes internacionais. Um segundo mandato de Bush seria também a continuação da degradação da situação no Médio Oriente, com o incondicional apoio norte-americano (desde logo financeiro) à ocupação e repressão militar israelita nos territórios palestinianos e à destruição de todas as condições para a implementação do plano de paz baseado na criação de um Estado palestiniano. Não é por acaso que é em Israel que Bush recolhe as mais altas taxas de apoio nos inquéritos de opinião, que nos Estados Unidos lhe poupariam qualquer esforço para ser reeleito. A total identificação de Washington, sem qualquer distanciamento crítico, com a espoliação territorial e a humilhação palestiniana nos territórios ocupados constitui o factor singular mais forte para alimentar o ódio das massas populares árabes contra os Estados Unidos, em particular, e o Ocidente, em geral, e para alimentar abundantemente o campo de recrutamento do terrorismo internacional.

Se no plano da política externa é de temer o pior, o mesmo se passa no campo da política interna, onde as propostas de Bush continuam a assentar essencialmente no desagravamento fiscal para os mais ricos, alimentando ainda mais o défice orçamental e a dívida pública, e na redução das despesas com os programas sociais, nomeadamente no campo da educação, da saúde, do emprego, da defesa do ambiente, da protecção dos interesses dos consumidores, etc. Mais preocupante ainda é a anunciada aceleração da "agenda moral" ultraconservadora da direita radical cristã, no sentido de condução da acção política segundo uma pauta religiosa extremista, nomeadamente a favor da punição penal do aborto, da condenação e discriminação dos homossexuais, da educação religiosa nas escolas públicas, do apoio estadual às igrejas, etc.

Essa agenda ultraconservadora de origem religiosa encontra uma barreira na jurisprudência do Supremo Tribunal das últimas décadas, que validou constitucionalmente as principais traves-mestras de uma sociedade livre e plural quanto aos valores morais (baseada na liberdade individual em matéria de costumes e de sexualidade e na separação entre a religião e as opções políticas). Mas essa barreira pode tornar-se assaz vulnerável com um segundo mandato de Bush. Tendo já nomeado numerosos juízes ultra-reaccionários para os tribunais federais inferiores e médios, Bush pode ter oportunidade de modificar a composição do próprio Supremo Tribunal com a nomeação de juízes semelhantes para ocupar as vagas que se podem verificar no tribunal. Como assinalava recentemente um colunista do "Guardian" de Londres, Bush nunca escondeu a sua admiração pelos juízes ultraconservadores Antonin Scalia and Clarence Thomas e não perderia a oportunidade de nomear outros à sua imagem. Com uma maioria judicial a seu favor a face da América moderna poderia mudar em poucos anos, com a subsequente mudança de jurisprudência em questões decisivas como a despenalização do aborto, a separação entre o Estado e as igrejas, a defesa do ambiente, a protecção dos deficientes, a licitude da "acção positiva" em favor dos afro-americanos e outras minorias étnicas, os direitos dos homossexuais, etc. Por exemplo, no ano passado, quando o Supremo Tribunal foi chamado a decidir um caso em que a polícia tinha entrado numa casa particular para prender um par homossexual em flagrante delito de sodomia (há Estados em que é crime...), os juízes Scalia e Thomas alinharam com a polícia; e no caso de Thomas, ele já defendeu que o princípio da separação entre o Estado e as igrejas pode não se aplicar a nível dos Estados...

Por tudo isto, a presente disputa presidencial norte-americana é tudo menos banal. Não está em causa provavelmente apenas o destino do Mundo nas próximos anos, dada a hegemonia económica e militar dos Estados Unidos, mas também a própria natureza da civilização democrática norte-americana, com sérios riscos de triunfo de políticas ao serviço do fundamentalismo moral e religioso, que não podem deixar de reflectir-se negativamente na liberdade e na igualdade dos cidadãos e no pluralismo das ideias. Não é por acaso que desta vez tantos artistas, escritores, académicos, jornais, etc. resolveram tomar partido nas eleições e alinhar contra Bush. Todos eles sentem que uma segunda dose pode ser bem mais nociva do que a primeira.

(Público, Terça-feira, 26 de Outubro de 2004)

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