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15 de julho de 2004

Seguindo o rasto  


De palavra desconhecida na língua portuguesa, a rastreabilidade tornou-se, em poucos anos, um instrumento de enorme importância para garantia da segurança em diferentes planos, envolvendo poderes públicos e privados, e aplicando-se às pessoas, à informação e às mercadorias.

De um processo meramente técnico transformou-se num instrumento de consequências jurídicas em diferentes domínios do direito. A sua importância actual é ainda mais evidente, em consequência da crescente mobilidade das pessoas e da liberalização dos mercados, ambas facilitadas pelos processos de integração regional, como a União Europeia.

Proveniente do inglês ?traceability? e do francês ?traçabilité?, o termo rastreabilidade vai entre nós buscar a sua raiz a rasto, que o dicionário define como marca sensível ou traço que alguma coisa deixa da sua presença. Conservar u m rasto obriga a organizar o seu registo e a mantê-lo disponível e acessível em qualquer momento do percurso. E se é esse o resultado esperado de um processo de rastreabilidade, aquilo que o justifica em todos os casos é quase sempre o acréscimo da transparência do percurso para limitar o risco e aumentar a segurança: a segurança genética, a segurança pública, a segurança informática ou a segurança alimentar.

Os progressos na biologia molecular vieram permitir identificar uma pessoa pela sua impressão genética (processo de identificação através da estrutura do núcleo das células), permitindo, assim, falar de rastreabilidade genética. A sua utilidade em matéria penal ou no direito de família tornou-se rapidamente evidente.

A rastreabilidade das pessoas, através dos seus dados pessoais, é também altamente favorecida pelas novas tecnologias de informação. Seguir os rastos deixados através do pagamento com cartões de débito ou de crédito, no uso de telemóveis pessoais ou de correio electrónico permite reconstituir percursos, como ainda recentemente aconteceu em Portugal num mediático processo judicial. Registar, conservar os registos e disponiblilizá-los se, por um lado, é susceptível de aumentar a segurança colectiva, por outro, coloca problemas de protecção dos dados pessoais, de reserva da vida privada e de garantia do anonimato.

Mas foi talvez em matéria de segurança alimentar que a rastreabilidade encontrou o seu campo de desenvolvimento privilegiado. Na complexa rede que é hoje o sistema de segurança alimentar na Europa, contido no essencial no Regulamento (CE) n.º 178/2002, a rastreabilidade é definida como a ?capacidade de detectar a origem e de seguir o rasto de um género alimentício, de um alimento para animais, de um animal produtor de géneros alimentícios ou de uma substância, destinados a serem incorporados em géneros alimentícios ou em alimentos para animais, ou com probabilidade de o ser, ao longo de todas as fases de produção, transformação e distribuição? (art. 3º, n.º 15, art. 18º).

Ao efectuar o registo completo dos produtos, desde a sua produção até ao consumo, a rastreabilidade permite limitar os riscos decorrentes da produção e transformação dos alimentos e garantir a sua qualidade. Esse registo do rasto possibilitará uma identificação mais precisa e rápida da responsabilidade de fornecedores e distribuidores ao longo da cadeia, por eventuais danos resultantes dos produtos para efeitos de indemnização das vítimas.

Para além da prevenção de danos conhecidos, a rastreabilidade pode ser um instrumento de precaução relativamente a danos que podem até nunca vir a acontecer. É o que se passa no caso dos OGM (organismos geneticamente modificados), onde a rastreabilidade se baseia na hipótese de ocorrência de um perigo cujos contornos não são plenamente conhecidos e sobre o qual não há certeza científica.

Transformada num instrumento de apertada vigilância sobre as pessoas e sobre as coisas, ninguém que o possa utilizar deverá, contudo, esquecer que seguir um rasto tem sempre como fim último obter uma garantia acrescida de segurança colectiva, como condição da liberdade individual e da qualidade de vida das pessoas. Caso contrário, corremos o risco de todos estes rastos servirem muito mais para nos enredar do que para nos libertar, fazendo-nos ter medo da nossa própria sombra.


Maria Manuel Leitão Marques
Diário Económico, 15/07/04

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