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25 de maio de 2004

Regalias concordatárias 

Vital Moreira

Uma das grandes conquistas do constitucionalismo liberal foi o fim dos privilégios e prerrogativas especiais bem como dos estatutos privativos de pessoas, categorias sociais ou instituições, em favor do princípio da universalidade e da igualdade de direitos e de obrigações, estabelecidos em lei geral e abstracta. Esse princípio conta-se hoje entre as traves-mestras do Estado de Direito. Mas o regime concordatário entre Portugal e o Vaticano, agora renovado com a nova Concordata, reiterando o estatuto especial da Igreja Católica em matéria de liberdade religiosa e de relações com o Estado, constitui uma prova evidente de que subsistem ainda algumas manifestações próprias do "Antigo regime".
A Concordata significa que a Igreja não aceita a lei geral senão na medida em que concorda fazê-lo por via bilateral, não prescindindo de tratamento especial naquilo que lhe diz respeito. Acima de tudo ela não admite ser considerada como uma igreja entre outras, submetida à mesma lei. Por isso temos dois regimes em matéria religiosa, a Lei da liberdade religiosa, para todas as demais igrejas, e a Concordata que estabelece o regime privativo da Igreja Católica e que, ao contrário daquela, não emana nem depende exclusivamente do legislador nacional. Mesmo quando coincidem em boa parte, trata-se de estatutos jurídicos distintos.
É certo que a Concordata não prevalece contra a Constituição, devendo antes ser sempre interpretada e aplicada de acordo com ela (princípio da "interpretação em conformidade com a Constituição") e desaplicada sempre que incompatível com ela, incluindo por violação do princípio da separação entre os Estado e as confissões religiosas e do princípio da igualdade de tratamento. Mas a experiência com a anterior Concordata mostra que os órgãos encarregados da guarda da Constituição nunca se preocuparam em eliminar as suas diversas inconstitucionalidades. E a jurisprudência do Tribunal Constitucional, especialmente em matéria de ensino da religião e moral católica a cargo do Estado, evidenciou uma orientação mais amistosa da Concordata do que da Constituição.
É evidente que a nova Concordata está em muitos aspectos, desde logo na sua linguagem, longe da que foi acordada entre Salazar e Pio XII, que selou a obscena solidariedade política entre o Estado Novo e a Igreja Católica. Mas por isso mesmo bem poderia ter sido omitida no preâmbulo da nova Concordata a infeliz homenagem à sua predecessora, que no mínimo é uma falsificação histórica e no máximo um injúria aos muitos que, mesmo no campo católico, denunciaram a sua iniquidade (lembre-se por exemplo a proibição de divórcio nos casamentos celebrados sob forma canónica) e o seu significado político.
A Concordata abunda em garantias, prerrogativas e isenções para a Igreja. Se se perdem algumas das antigas, não são poucas as que permanecem, incluindo algumas novas, como as que respeitam à Universidade Católica e à garantia de disponibilidade de terrenos para fins religiosos. Especialmente relevantes são as que respeitam às numerosas isenções fiscais (onde deixou porém de figurar a escandalosa isenção da tributação dos rendimentos dos eclesiásticos) e ao ensino da religião e moral católica nas escolas públicas. Neste ponto, manteve-se o regime de ensino a cargo e a expensas do Estado, acrescentando-se agora que o ensino dessa disciplina será feito ?sem qualquer forma de discriminação?. Não se percebe bem o que se quer dizer com isto, ou seja, se a proibição de discriminação diz respeito às demais religiões ou às demais matérias lectivas, o que implicaria idêntico regime de horário e de avaliação...
Já no que respeita às escolas da Igreja Católica não existem grandes novidades, ressalvado o reconhecimento expresso da Universidade Católica e da sua ?especificidade institucional?. Mas aqui a Concordata é explícita em que as escolas católicas estão sujeitas à lei, no que respeita à sua criação, graus, títulos e diplomas, pelo que continua a não existir qualquer espaço para a invenção de um "ensino concordatário" como "tertium genus" ao lado do ensino público e do ensino particular, oportunamente engendrado, sem qualquer base constitucional nem concordatária, por alguns comissários jurídicos para justificar a não submissão da Universidade Católica à lei geral em matéria de criação de cursos, "numerus clausus", graus académicos, etc.
Um dos muitos aspectos em que a nova Concordata segue a anterior diz respeito ao regime dos casamentos celebrados sob forma canónica, sujeitando esses casamentos ao direito canónico e à jurisdição dos tribunais canónicos, para efeito de validade e de anulação, dizendo-se agora porém que as sentenças de anulação dos tribunais canónicos carecem de ser reconhecidas e confirmadas pelos tribunais do Estado para produzirem efeitos jurídicos civis. Mesmo assim, esse regime canónico continua a contrariar a norma constitucional segundo a qual os casamentos canónicos só se distinguem dos civis pela forma de celebração (só a esta se refere a Constituição), ficando porém submetidos substancialmente à lei, ou seja, ao Código Civil e, consequentemente, à jurisdição exclusiva dos tribunais do Estado.
Especialmente lamentável e despropositado (para dizer o menos) é o preceito segundo o qual, «celebrando o casamento canónico os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais[, bem como] o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio» (art. 15º). Se tal formulação era admissível no protocolo de 1975, que revogou a primitiva proibição jurídica do divórcio (substituindo-a por essa "interdição religiosa"), já não tem nenhum cabimento numa Concordata nova, quando esse problema já se não coloca. O Estado é por princípio alheio à definição e cumprimento dos deveres religiosos dos seus cidadãos, pelo que não deve associar-se à sua ?oficialização? num instrumento jurídico bilateral subscrito por ele, porque lho não permite o princípio da separação, sem falar, no caso concreto, do direito ao divórcio independentemente da forma de casamento, constante da Constituição (que ainda não existia em 1975).
Existem ainda outras normas, que embora reformulando normas anteriores, podem dar lugar a situações equívocas ou melindrosas. Tal é o caso do preceito que permite acções conjuntas da Santa Sé e do Estado Português «no espaço dos Países de língua portuguesa» (art. 4º), o que pode parecer uma ingerência nos seus assuntos internos; e o mesmo sucede com o preceito que garante à Igreja a protecção estadual contra «o uso ilegítimo de práticas ou meios católicos» (art. 7º), o que pode supor a intromissão do Estado nos conflitos internos daquela ou na execução das suas medidas disciplinares.

(artigo no Público de hoje, 25 de Maio)

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